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“O sono pode marcar o presente e o futuro da criança”

Um problema (de sono ou de outra natureza) tem importância desde que cause perplexidade, ansiedade ou disrupção na vida dos pais e das crianças, refere o pediatra Mário Cordeiro.

Um problema (de sono ou de outra natureza) tem importância desde que cause perplexidade, ansiedade ou disrupção na vida dos pais e das crianças, refere o pediatra Mário Cordeiro.

“Dormir Tranquilo” é o título do livro que lançou no ano passado. Fê-lo porque o sono da criança é uma das maiores causas de consultas por motivos não estritamente de doença. Conselhos sobre o que fazer. E não fazer.

“Deixe-o chorar”: Quase todos os pais já receberam este conselho relativamente ao sono dos seus filhos. Trata-se de um erro ou de um método válido?
Não sou adepto de se deixar chorar um bebé ou uma criança, desconsolada, sem apoio dos pais, aumentando o nível de ansiedade e medo, pelo que discordo dos métodos que preconizam fechar a porta e contar minutos. Até acredito que a criança acabe por adormecer, exausta, mas descrente, carente e estou certo de que esses “fantasmas” ressurgirão mais tarde, na adolescência ou na idade adulta, só que sob formas encapotadas, difíceis de identificar. No entanto, quando os pais estão junto da criança, a fazer companhia, sentados ao lado dela, e ela chora, aí podem acalmá-la e o choro já será mais de exigência do que de desolação.

 

Foto de Filipe Casaca/i

O sono é tão importante para a saúde das crianças – e dos pais – que justifica um livro?
Pessoalmente, achei que sim. É uma das maiores causas de consultas por motivos não estritamente de doença: Afecta muito a vida das pessoas, pode marcar o presente e o futuro da criança. A disrupção que o mau dormir provoca é conhecida, ou não usem as polícias políticas a privação de sono como método de tortura.

No entanto, escasseava literatura específica sobre o tema em Portugal?
Sim. Pelo menos na minha perspectiva de uma explicação do que é o sono e das determinantes biológicas, psicológicas e sociais do sono e das consequências das suas perturbações, entrando por áreas muito variadas, como o tipo de quarto da criança, o sonambulismo, os papões, o leite a meio da noite, as birras para adormecer, etc.

Em que momento as noites agitadas passam a ser consideradas problemas de sono, do ponto de vista médico? E quais os problemas de sono mais frequentes na primeira infância?
Um problema (de sono ou de outra natureza) tem importância desde que cause perplexidade, ansiedade ou disrupção na vida dos pais e das crianças, mesmo que, clinicamente, não tenha significado de maior. Acho que os médicos não podem ser apenas “observadores do biológico”, mas têm – especialmente os pediatras, dado que lidam com famílias e com comportamentos e desenvolvimento humano –, que saber de Antropologia, Psicologia, Sociologia e ter uma visão integrada e alargada dos problemas. Os vários problemas do sono, por exemplo, não querer ir para a cama, ter dificuldade em adormecer e precisar dos pais, querer ir para a cama dos pais a meio da noite, acordar e querer leitinho, acordar muito cedo, ou outra gama de questões, como sonambulismo, falar durante o sono, enurese nocturna, medo de bruxas e fantasmas, terrores nocturnos e sonhos ou pesadelos, são exemplos de problemas muito frequentes. Duvido que haja muitas crianças que passam a infância sem ter alguma destas questões.

Bebés que não dormem sozinhos, só adormecem ao colo ou exigem a presença de adultos são sempre sinónimo de problemas (no sentido de doença) do sono?
Não. Traduzem stress, ansiedade, sensação de insegurança, medo. No livro que agora terminei, “O Livro das Birras e dos Medos”, abordo detalhadamente esta questão, indo até à nossa origem enquanto espécie, aos “fantasmas” que nos perseguem enquanto crianças e que nos acompanham enquanto pais, e tudo o que nos faz, biológica e psicologicamente, abordar a questão de querermos ousar mas sentirmos necessidade de regredir, por medo. Claro está que se os problemas afectam a família de forma a causar sintomas orgânicos ou perturbações da saúde mental, estamos em face de um grave problema de saúde.

Quais as dicas e conselhos básicos para dormir tranquilo?
Securizar, ter calma, pensar que se trata de um problema real e não de uma “birra”. É talvez dos momentos onde maior diferença faz pensarmos a criança enquanto criança, ou seja, ser frágil, carente, dependente, sem “armas” para enfrentar os medos, ou, como ainda muita gente faz, pensar que são “meninos caprichosos que merecem o que têm”. Alguns adultos são de uma arrogância que me faz pele de galinha, pelo que representam de má auto-estima, de mau carácter e também de desdém pelo sofrimento das crianças. Note-se que isto nada tem a ver com facilitismos, estragar as crianças com mimos exagerados (que não são mimos…), andar a reboque dos meninos ou ser feito de gato-sapato pela omnipotência de pessoas pequeninas mas que, se forem deixadas sem educação, limites e aprendizagem democrática, ficarão adultos narcísicos e impossíveis de aturar… infelizes a fazer os outros infelizes. O equilíbrio é a nota fulcral desta sinfonia, e também o fazer sacrifícios, porque esta história de se pensar que se tem filhos e que nada se muda na vida, tem muito que se lhe diga…
Securizar é ter um ambiente calmo, é a criança sentir que os pais estão do seu lado, é educar desde o primeiro dia, é dar sentido rítmico ao adormecer, com música (a melhor “chupeta” para a vida e para a criança) e, insisto, compreender o que é uma criança.

Quando começam os sonhos maus e pesadelos? É possível diminuir a ocorrência dos mesmos?
Pesadelos e sonhos maus são o mesmo: são sonhos geralmente persecutórios (geralmente algum animal, fera, serpente, monstro ou o que seja vem atrás de nós e não conseguimos fugir) ou outros sonhos de explosões, raiva, caos, que representam a gestão dos medos e da nossa parte má (e da parte do mundo que também é “pouco boa”). Nos pesadelos, ou sonhos maus, a criança acorda e, não raro, lembra-se do sonho, pelo menos naquela altura. Terrores nocturnos é diferente: a criança não acorda, parece acordada mas está ainda numa zona cinzenta, não reconhece os pais, empurra-os e só acalma conversando com ela (mas ela a dormir, apenas mudando o enredo do “filme”) ou acordando-a, para depois a adormecer. Os sonhos fazem parte da vida e são muito bons para a saúde, sejam bons ou maus. Muitas pessoas não se recordam de nenhum tipo de sonho, outras lembram-se todos os dias de vários, mas todas as pessoas (e as crianças) sonham porque é o nosso espaço de liberdade, de regresso (legítimo) à omnipotência narcísica dos 15-24 meses de idade, só comparável à fantasia do brincar. O sonho, como escreveu Freud, é a nossa via romana para o inconsciente e é no inconsciente que estão guardadas as memórias, os traumas mas também muitas coisas boas… das quais não nos lembramos porque antes dos 4-5 anos de idade nada está (quanto a sentimentos) presente.

O segundo ano de vida costuma ser acompanhado por regressão no sono? Quais as diferentes etapas até aos cinco anos?
O segundo ano de vida é perturbado pelo enorme desenvolvimento cognitivo, psicológico, motor, raciocínio, sentimentos, marcha, fala… enfim, tanta coisa! E também, a partir dos 18 meses, pela angústia existencial, medos, medo da morte, solidão, medo do abandono, consciência da fragilidade humana e da dependência dos pais. Depois, mais tarde, a criança começa a dormir melhor e a partir dos quatro anos são raros os que têm mau dormir, embora possam sempre acordar com terrores ou qualquer outra coisa episódica.

Pais com vidas profissionais muito preenchidas podem ter dificuldades em manter rotinas ou evitar facilitismos – a que sinais devem estar atentos relativamente ao sono dos seus filhos, de maneira a perceberem que precisam de alterar algo?
Precisamos de ter os olhos abertos e pensar os nossos filhos como crianças. Fico às vezes espantado com a ignorância de certos adultos, alguns deles profissionais, sobre o que é uma criança. Há pessoas que sabem mais de cachorros ou crias de outros mamíferos do que da cria do ser humano!
Quanto ao trabalho, tenho a minha experiência – que é minha e apenas vale por isso –, mas que sempre me disse que poderia compatibilizar trabalhar muito e ter filhos e acompanhá-los, mimá-los, dar-lhes o que precisam de mimo, ternura, ensino e educação. É muito fácil dizer que o trabalho não deixa tempo para mais nada, mas ter filhos não pode ser uma decisão leviana nem um fardo que, enfim, se carrega porque não se pode fazer mais nada, ou então delegando a parentalidade nos avós ou nas educadoras e empregadas. Noites mal dormidas? Nem me pergunte. Sei o que são. Muitas centenas ou mesmo milhares. Mas ver a cara dos meus filhos, assustados, e saber que com mimo eles acabavam por readormecer e isso os ajudava a estruturar enquanto pessoas mais felizes e mais resilientes e assertivas, dava-me muito gozo e compensava. Talvez se pensarmos que aquele bebé ou aquela criança assustada podemos ser nós em bebés, com momentos de desamparo e de desolação, nos permita ter uma outra atitude que, repito, não passa por fazer tudo o que as crianças querem – por exemplo, sou terminantemente contra as crianças dormirem na cama dos pais –, mas por apoiar no crescimento.

Entrevista de Cláudio Garcia

Artigo publicado na edição de 8 de abril de 2016 do REGIÃO DE LEIRIA, num especial de 18 páginas sobre a infância.

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