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O meu diário: Mãe e filho

Urge criar comissões de acompanhamento dos idosos e retirar os pais à guarda dos filhos. Urge criar filhos dispostos a adotar pais de outros.

Helena Vasconcelos, médica hml.vasconcelos@gmail.com

Ele vivia em Lisboa e ela também. Eram mãe e filho e ainda o são que há laços que só são destrutíveis pela morte.

Cada um morava na sua casa e visitavam-se no limite do razoável, numa relação entre uma mãe doente e um filho único. A ele nunca o vi, a ela vejo frequentemente. É minha doente e sofre de uma doença crónica. Mentira vi-o ao princípio quando ela o ostentava numas fotografias que retirava da carteira com dificuldade e me apresentava. Já lhe mostrei o meu filho? Dizia de uma forma repetitiva. E eu fingia que não tinha a certeza e deixava que ela puxasse com dificuldade três fotografias: dele num triciclo, dele em pose junto a ela, adolescente, e dele feito homem em fotografia de passe. Esta última fotografia já indiciava o distanciamento que foi grassando entre os dois. É impessoal e deve ter sido dada à mãe perante a insistência dela.

Ele feito homem casou e teve uma filha, a única neta dessa senhora. Profissionalmente fez-se um homem importante e foi destacado para esta zona do país para vir liderar um projeto. Trouxe a mãe mas dada a incapacidade de esta se cuidar arranjou um bom lar para ela ficar. E paga-o religiosamente a tempo e horas não lhe faltando com nada. Os medicamentos, as roupas e tudo o mais que ela precisar. Tudo menos o mais importante: ele próprio. E ela fica à porta a pensar que é desta vez que ele vai entrar e lhe dar um abraço, é desta que os computadores se avariam e ele tem de vir pagar o lar diretamente. Nos dias do aniversário e do Natal a coisa piora e os olhos não largam a porta à espera de quem nunca chega. E ela, mãe, desculpa-o: é muito ocupado, tem muito trabalho, é muito importante. É o menino dela, e não se diz mal do seu menino. A neta deve estar grande, mas só a imagina porque já não a vê há alguns anos. Da nora não diz mal, só que trabalha muito. Transfere o amor que tem para dar para mim e para as funcionárias do lar: dá umas prendinhas feitas por ela e diz que estou bonita e cada vez mais nova, o que nitidamente é uma grande mentira. Este senhor é uma das pessoas a que gostava de bater juntamente com alguns políticos. Só sei metade da história, só sei metade da versão mas nada justifica o abandono a que foi entregue esta senhora.

Urge criar comissões de acompanhamento dos idosos e retirar os pais à guarda dos filhos. Urge criar filhos dispostos a adotar pais de outros. Temos de parar para refletir como sociedade cada vez mais envelhecida o que queremos.

E se por acaso o senhor se revê como um dos protagonistas desta história faça-me um favor e vá visitar esta senhora enquanto pode.

(texto publicado na edição em papel de 2 de março de 2012)