Numa das artérias centrais da cidade das Caldas da Rainha, encontrei um dia um grafíti onde se podia ler: “Antes das cidades já havia pessoas?”.
A pergunta, operando por uma espécie de redução ao absurdo, pode parecer desconcertante. Historicamente, as civilizações urbanas surgiram numa fase relativamente tardia da evolução das sociedades humanas.
A história económica postula que o aparecimento de cidades implica não apenas a formação de um excedente demográfico, mas sobretudo a disponibilização de um excedente de produção agrícola, sem o que não poderia ocorrer uma deslocação de força de trabalho dessa área para a do comércio, da manufatura, da defesa e da organização. A cidade é hierarquização territorial, institucionalização das relações sociais, organização das funções de cariz público, ou seja, atribuição de deveres em função de necessidades.
É na cidade, escreveu com otimismo um muito citado historiador da origem das cidades, que se respira o ar da liberdade. A cidade é uma instituição de instituições, regulada por normas gerais e abstratas, a Lei. Mas a lei não garante por si só a justiça, a equidade, a autonomia dos cidadãos, a democraticidade dos processos de decisão.
//= generate_google_analytics_campaign_link("leitores_frequentes_24m") ?>José Luís Villacañas recorda um conto de Franz Kafka, que narra a história de um camponês que permanece uma vida inteira junto da porta que dá acesso à Lei. O camponês sente-se atraído pela luz que dela jorra. A porta está aberta, mas defendida por um guarda que o impede de a franquear. A tudo o guarda resiste, aos pedidos e subornos. Ao fim de muitos anos, sentindo a morte aproximar-se, o camponês faz a pergunta que havia calado: “Se toda a gente procura seguir a Lei, como se explica que nestes anos só eu tenha procurado entrar?”, a que o guarda responde: “Ninguém podia ter obtido autorização para entrar, porque esta porta estava destinada apenas a ti. E agora vou fechá-la”.
Se à cidade está associada a diferenciação e a regulação institucional, também está associado o autoritarismo. A cidade, com o sistema de governo mais aperfeiçoado da antiguidade, Atenas, foi também aquela cujas instituições deliberaram a condenação à morte de um filósofo interpelante, por vezes irreverente, Sócrates.
É desta tensão – entre a cidade como fator de inclusão e a cidade como cenário de exclusão – que falarei nesta crónica mensal. A cidade é património comum e é criação, ao mesmo tempo que é fragmentação e fronteira. Refletindo sobre a experiência pessoal e a literatura, proponho-me trazer regularmente ao REGIÃO DE LEIRIA, propostas de leitura e interpretação do lugar do urbano e do papel das cidades no mundo contemporâneo.
(texto publicado a 7 de fevereiro de 2013)