Assinar

Tempo incerto: Fragmentos da memória

Outrora, nos serões das longas noites de inverno, sabia bem ouvir ou ler histórias de “proveito e exemplo”, à lareira, enquanto tremeluzia a luz do candeeiro a petróleo, maravilhado com a nobre gesta de santos, aventureiros e heróis que tinham ajudado a construir a nação e a morigerar os costumes de épocas tidas por primitivas e selvagens. Um mundo imaginário num Portugal desaparecido para sempre.

Por muito gravosos que fossem os perigos e os desafios da jornada, contra ventos e marés, o bem acabava por triunfar sobre o mal e o conforto das grandes certezas, perante a imprevisibilidade do provir, apaziguava a alma.

As histórias, onde se misturavam as fábulas de Esopo, com as lendas, os contos populares e as narrativas de Adolfo Coelho, Alexandre Herculano, Feliciano de Castilho ou Simões Muller, não se preocupavam muito com a verdade dos factos, mas, sobretudo, com os ensinamentos morais que pretendiam veicular. O valor da palavra dada, da dignidade e da honradez, o único caminho certo para o respeito da comunidade e a conquista da felicidade eterna.

Era um universo fantasiado e maravilhoso onde pontificavam as acções norteadas por princípios, cuja defesa, muitas vezes, conduzia ao sacrifício supremo, mesmo quando em nome de um amor que os costumes do tempo não podiam tolerar, como no caso de D. Pedro e de D. Inês de Castro.

As personagens estavam repletas de façanhas audaciosas, de virtude e agigantavam-se contra as injustiças e as misérias do mundo, guiavam-se na narrativa por causas nobres e ideais, o que lhes permitia transcender a morte e conquistar um espaço singular na memória colectiva.

Viriato, Afonso Henriques, Egas Moniz, Giraldo Sem-Pavor, Nuno Álvares Pereira e Bartolomeu Dias misturavam-se com heróis de ficção de outras eras e aventuras, como Ulisses, o Príncipe Valente, D`Artagnan, Zorro ou o luso-britânico major Alvega, que se batia nos céus da Europa contra a Luftwaffe de Hitler, em nome da Liberdade.

No fundamental, permitiam-nos acreditar que, apesar das suas fragilidades, colocavam, em última instância, as suas condutas ao serviço de outros homens e de valores ético-morais estruturantes da civilidade.

Escrito de acordo com a antiga ortografia

(Texto publicado na edição de 9 de março de 2017)