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O meu diário: Gungo

Quem vai ao Gungo tem de lá voltar. O Gungo fica em Angola a cerca de 800 km de Luanda. Fica num relativo interior porque 70km não deveria significar ser interior, mas quando se demora 5 horas a percorrê-los tudo é considerado assim.

hml.vasconcelos@gmail.com

Quem vai ao Gungo tem de lá voltar. O Gungo fica em Angola a cerca de 800 km de Luanda. Fica num relativo interior porque 70km não deveria significar ser interior, mas quando se demora 5 horas a percorrê-los tudo é considerado assim. Não tem água, não tem luz, não tem médico e educação é escassa. Quase não tem casas de tijolos e carros contam-se pelos dedos das mãos e devem sobrar muitos dedos. Tem milhares de crianças, tem um povo alegre e fraterno, tem montanhas e paisagens surpreendentes, daquelas que apesar do sol intenso fazem a gente arrepiar-se. Tem bananas, feijão, milho, mandioca, café e amendoim. E este último foi para mim uma revelação porque ao contrário do que pensava não fica pendurado nos arbustos mas é uma espécie de batata (tubérculo) e arranca-se como as ditas. Tem galinhas, porcos e cabritos à solta e cobras e lagartos e outros repteis escondidos debaixo das pedras.

Tem uma estrada (picada) que para lá chegar convém amarrar os ossos e os órgãos sob pena de chegarmos lá com o fígado à esquerda e com o rádio e o cúbito entrançados.

Tem ainda um grupo de malucos daqui da terra, missionários da diocese Leiria- Fátima, Grupo missionário Ondjeto liderados no momento pelo padre David. O padre David batizado logo pelo padre Macguiver porque tanto diz missa como repara carros geradores, constrói casas ou faz blocos de tijolo com terra local. A Susana Querido, que casa bem com o apelido, uma professora que largou tudo para apoiar a missão e a mana Teresa que, sendo originaria do Gungo, já domina doenças e medicamentos e já dá consultas. Esta gente é inspiradora e um exemplo a seguir e apoiar. Nós associação Atlas fomos ao Gungo e viemos rendidos. Rendidos à pobreza dessa gente que contrasta com o riso franco e aberto de quem não tem nada a perder porque já tudo está perdido quando nascemos num lugar assim. Quando ouvimos mulheres a dizer que são mães de 10 filhos 5 na terra e 5 vivos, quando só dão nome definitivo às crianças depois dos 2 anos porque como morrem muito não convém investir demais. O sentido da existência está lá nas coisas simples, na gente indefesa e em terras como esta que a entreajuda vale mais do que um cartão visa (lá não vale mesmo nada).

(Texto publicado na edição de 23 de março de 2017)