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Cidade imaginária: Ana e Alice

Alice gostava de Paris, que mapeara com lugares de eleição, ruas, edifícios, outras marcas afetivas.

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João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com

Ana marcara o jantar para a Brasserie Balzar, na Rue des Écoles. Esta preferência tinha que ver, como me explicara noutra ocasião, com o facto de aquele ter sido um pouso habitual de Mário Soares no seu exílio em Paris.

Há mais de um ano que não nos víamos e a conversa principiou pelas atividades em que estávamos envolvidos. Depois, foi-se afastando da esfera pública e acercando-se de temas mais pessoais. Era sempre assim. Conhe­cemo-nos desde a adolescência (de facto, desde os 14 anos dela, 17 meus) e, apesar dos interregnos de relacionamento, lidamos bem com a partilha da intimidade.

Nos últimos anos, múltiplas perdas afetivas abateram-se sobre Ana. Entre elas, a de Alice. Ana telefonara-me, em Lisboa, no dia das cerimónias fúnebres, logo após a incineração do corpo, mas pouco faláramos então sobre a morte de Alice.

Alice era uma mulher de opiniões desassombradas, embora por vezes um pouco ingénuas. Os laços de simpatia, confiança e cordialidade que entre nós se estabeleceram tiveram evidentemente a Ana como centro, mas não foram circunstanciais. Um dia, Alice propusera-me, a troco de lições de Latim, História, Filosofia e Organização Política, que ajudassem Ana a preparar os seus exames de 7º ano, um generoso pagamento. Esta espécie de perceptorado permitia-me ainda beneficiar de uma clausula não explicita: um convite para jantar em dias de lição. Foi com esta ajuda imprevista e generosa que fiz face aos encargos com o meu primeiro ano na Faculdade de Letras de Lisboa.

Ana emigrou para Paris com pouco mais de vinte anos. Enfrentou situações difíceis, que não esquece, e, se hoje conta com uma posição de relevo na produção cultural francesa, deve-a à resiliência que adquiriu e às capacidades e competências que exercitou e de que deu provas.

Contou-me os últimos anos de Alice, as sequelas do envelhecimento, relatou as visitas que mutuamente se faziam, em Paris e Lisboa. Alice gostava de Paris, que mapeara com lugares de eleição, ruas, edifícios, outras marcas afetivas.

Que fizeste da cinzas de Alice? – perguntei a Ana. – Trouxe-as comigo e durante algum tempo estiveram em minha casa, até decidir que fazer com elas. Achei que era nesta cidade que as devia depositar. Percorri todos os locais que ela amava em Paris, um após outro, e por todos eles distribui um pouco do pó de Alice.

(texto publicado na edição de 6 de fevereiro de 2014)