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Cidade imaginária: História

Reconheceu-a pela voz e, sobretudo, pela linguagem corporal.

João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiriaserra.jb@gmail.com
João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com

Reconheceu-a pela voz e, sobretudo, pela linguagem corporal. Antonieta falava com uma espécie de convicção sobressaltada, os braços e as mãos de dedos longos sublinhando a veemência do discurso. Os traços de uma soixante-huitard mantidos e vincados pelos anos vividos com Jorge, um antigo líder da guerrilha angolana.

Esperavam, nos jardins do Esma Sultan Mansion, que terminassem os preparativos para o buffet no terraço frente ao Bósforo. – Antonieta?! – chamou ele. Ela virou-se com a elegância de uma bailarina e respondeu sem o menor sinal de surpresa – Querido Mário, que bom ver-te! Esperas por mim, dentro de uma hora?

Era uma noite amena de Setembro. Katia Guerreiro integrara-se bem no edifício de aço e vidro transparente na noite estrelada de Istambul, cantando Sophia, Vinicius e Lobo Antunes.

Passeavam agora pelo bairro Ortakoy, de braço dado como um velho casal, ela sugerindo uma compra ou uma bebida, nos quiosques e pequenas barracas. – Não me digas que foi aqui que te escondeste nos últimos anos! Ela explicou: viera a Istambul numa visita organizada por uma Academia italiana de culinária e recebera uma proposta para organizar o acolhimento e acompanhamento de turistas italianos e austríacos a Istambul. Alugara um apartamento no bairro de Nisantasi e recomeçara tudo. – A morte do Jorge e a mudança política em Portugal abala­ram-me muito. Aqui inventei uma nova energia.

– Vives sozinha? Ela contornou a pergunta: – A uma senhora não se pergunta a idade, nem se tem namorado. A menos que estejas interessado… Era agora a vez dele se furtar à pergunta.

Nos dias seguintes, conheceu a cidade pelos olhos de Antonieta. Combinaram jantar na véspera do regresso dele a Portugal. – Fiquei fascinado, confessou ele, com a cidade e contigo, com a forma como te fundiste com ela. Mário sabia que ela se interessava pelos mistérios dos transvases entre mundos. – Já tinhas passado por aqui, noutra época? Ela sorriu, os olhos subitamente velados, e respondeu com simplicidade desconcertante: – Provavelmente.

– Conhecemo-nos desde a Faculdade, há quase meio século. Estamos condenados a este tipo de encontros: inesperados, fantásticos, mas inconsequentes? -perguntou ele? – Sim, respondeu ela. – Vou-te contar uma história que ignoras. Descobrimos eu a Luísa, a tua ex-mulher, que ambas nos tínhamos apaixonado por ti. Estávamos no terceiro ano da Faculdade, numa viagem a Espanha. Escre­víamos-te todos os dias, uma guardava as cartas da outra. Acordamos que seria a sorte a decidir. Aquela cuja mala surgisse em segundo lugar no tapete rolante à chegada a Lisboa desistiria. – Foi a Luísa que ganhou! – disse Mário – Falou-me das cartas, mas nunca mas mostrou.

– Pois… Sucedeu que a minha mala se extraviou e nunca apareceu. Perdi-te por falta de comparência.

(texto publicado na edição de 21 de agosto de 2014)