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Caminhando: or piango or canto… – Mulheres que escrevem vivem perigosamente

A escrita costura trajetos comuns e paradoxais: é inevitável revelar a vida retalhada.

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Cristina Nobre, professora no Instituto Politécnico de Leiria cristina.a.nobre@gmail.com

Se, no prefácio do livro de Stefan Bollmann, cujo título roubei para esta crónica, Elke Heidenreich (septuagenária, alemã e disciplinada, mediática e opinion maker…) relembra o que as mulheres escritoras sempre intuíram, exemplifica-o com as palavras da poetisa argentina Alfonsina Storni (46 anos, suicídio, lan­çando-se ao mar):

Nós, mulheres intelectuais, saímos perdedoras em assuntos de amor.

Imagino que os love affairs são bem mais vastos e profundos do que as mulheres intelectuais (como eu…) superficialmente pensam, e procurei um caminho ainda mais despojado: aquele em que a religião chora a morte do homem Jesus Cristo numa Quaresma de sofrimentos e aflições. Antes da divina ressurreição… O renascimento que – não se confirma com as provas científicas aceites no foro do mundo ocidental – nos parece pouco intelectual. Mas é, sem dúvida, o mais poético que já se escreveu/leu e o degrau mais periclitante para um misticismo ascético que só a pureza da fé (jejuada ou não) forte e decidida, com louros de espinhos (?), conseguirá ante e entrever…

Li a Mensagem do Santo Papa Francisco para a Quaresma de 2014, e aprendi outros nomes da palavra amor no vocabulário e ética religiosos; como leitora intelectual, pobre (paupérrima?) iniciada na fé, selecionei um breve pedaço da caminhada proposta na equilibrada e assertiva mensagem de Francisco, quase s.m.s. expandido para todos os homens lerem e se entenderem uns aos outros:

O amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e as distâncias.

A escrita é vida perigosa, atravessa caminhos que quem não escreve tem receio de calcorrear. Na China encontrei a maravilha da muralha única, deslumbrante de infinito – que marca anos de escravidão e corpos massacrados acartando pedra às costas e dispondo-as em tectónicas placas para defender do outro, o intruso – e a dor da partição contrastiva de classes sociais – que faz a mais bela chinesa, vestida à modelo ocidental, atravessar a caótica avenida ao lado do mendigo, transportador de cartões rejeitados no lixo pelas lojas, sem um trocar de olhos ou aceno sorridente a cerzi-los.

A escrita costura trajetos comuns e paradoxais: é inevitável revelar a vida retalhada, embora não saiba nem pretenda corrigi-la. A intervenção está talvez mais perto da fé, e foi por (só!) não terem encontrado a via divina da quaresma penetrante, capaz de conter os corações dos outros no nosso, que tantas mulheres intelectuais interromperam o caminho, pararam de escrever e sossegaram no suicídio, desde Virginia Woolf a Zelda Fitzgerald.

(texto publicado na edição de 10 de abril de 2014)