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Crónicas do quinto império: O bom português – II

Queixava-se um anónimo italiano nos inícios do séc. XVII que o nobre português “só estuda questões de gravidade e etiqueta porque é em coisas como esta e não na virtude que consiste a nobreza. Pondera a quem deve tratar por tu, por Vós, por Mercê, por Senhoria, por Excelência e por Alteza (…)”.

Joaquim Ruivo, professor jruivo2@sapo.pt

Queixava-se um anónimo italiano nos inícios do séc. XVII que o nobre português “só estuda questões de gravidade e etiqueta porque é em coisas como esta e não na virtude que consiste a nobreza. Pondera a quem deve tratar por tu, por Vós, por Mercê, por Senhoria, por Excelência e por Alteza (…).

Dá tratos à cabeça para pensar a quem deve tirar o chapéu, se meio, se por completo, se baixá-lo até baixo, se conservá-lo alto; se fazer cobrir-se aquele com quem se fala ou se deixá-lo de cabeça descoberta, ou se deve cobrir-se ele próprio (…)”. Cem anos depois, D. João V – perante “a confusão que sucede nos Tratamentos” – ordena quem há-de ser tratado “de palavra e por escrito” por Excelência, Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor, Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, por Senhoria Ilustríssima, só por Senhoria…

Em pleno século XXI, continuamos conservadores quanto baste. Porque em Portugal o “hábito faz o monge”. Quero com isto dizer que entre os portugueses, talvez mais que em alguns outros povos, o cargo ocupado ou o título adquirido motivam uma diferenciação excessiva, implicando até atitudes distintas.

Já não caímos é certo no exagero, próprio de um país pobre e elitista, de chamar “Sr. Dr.” ao imberbe estudante que iniciava os seus estudos na universidade. Nem tão pouco, como na minha tropa feita em 83, de tratar o alferes por “Vossa Senhoria” e o capitão por “Vossa Excelência”.

Não admira, contudo, que o ministro Álvaro tenha sido censurado e até alvo de chacota nos media por, à boa maneira anglo-saxónica, ter sugerido há alguns meses atrás que o tratassem por “Álvaro”. Como se a credibilidade da sua ação enquanto ministro pudesse, desde logo, ficar manchada por esse pecado de desvio à etiqueta.

Efetivamente, o formalismo associado aos cargos políticos é entre nós exagerado, mas só enquanto o cargo dura. Lembro-me de um episódio que presenciei há meia dúzia de anos. Um ministro era esperado para encerramento de um congresso. Chegado um pouco antes da hora marcada, logo foram os palestrantes instigados a finalizar porque Sua Excelência o Sr. Ministro havia chegado; era ver as vénias e os cumprimentos agachados, o abrir alas respeitosas no afã de conduzir Sua Excelência à mesa de honra. Algum tempo depois, o mesmo cidadão, já ex-ministro, foi convidado num jantar de homenagem. O barulho dos talheres e a rumorosa conversa de centenas de convidados sobrepôs-se sem apelo à mensagem do “pobre homem” que acabou por não ser ouvido.

(texto publicado na edição em papel de 17 de fevereiro de 2012)