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O meu diário: Velhos amigos

Se não é, imagine-se velho! Imagine que tem dificuldade em se mexer, que o seu corpo o tomou como refém.

Helena-vasconcelos
Helena Vasconcelos, médica hml.vasconcelos@gmail.com

Se não é, imagine-se velho! Imagine que tem dificuldade em se mexer, que o seu corpo o tomou como refém. Não consegue correr, andar depressa, subir e descer escadas. Agora imagine-se sem conseguir andar. Ir à casa de banho é uma tarefa árdua, programada e pensada , agendada, prevista ao detalhe. A mão direita agarra aqui e a esquerda acolá, o pé levanta para aqui e a cabeça inclina para ali. Agora junte-lhe a falta de dinheiro. O dinheiro não vai chegar para os medicamentos, para comer, para transporte, para o médico. Se tivesse dinheiro pagava para me cuidarem, pagava para me fazerem companhia. Está tudo tão caro! Agora o pior cenário: tudo isto ou muito disto, e sem carinho, sem afeto, sem ninguém que passe tempo, ainda que seja um singular minuto por dia a pensar em nós, a conjeturar se estamos vivos, se temos frio , se temos que comer. E já tivemos 18 anos e já fomos giros. Tivemos quem nos desejasse e amasse e até também quem nos odiasse. E agora nada ! Nada mais interessa ! E ainda há pouco tempo fazíamos a melhor sopa de feijão e limpávamos a casa como ninguém. Ainda há pouco tempo fazíamos renda e cantávamos bem. Trabalhávamos na fábrica e cortávamos lenha. Parece que foi ontem. Como foi possível chegar a isto. E agora nada nos obedece. Nem o corpo, nem o cérebro, nem a vontade, nem o humor.

E quando chega o fim de semana não temos que comer, nem ninguém que nos entre pela casa e nos pergunte “tudo bem?”. Estamos pra aqui à espera que a ceifeira passe e nos colha.

Mas andam uns malucos pela cidade que se preocupam connosco que nos vêm trazer comida e carinho e nos perguntam como passamos os dias, se nos dói alguma coisa, se temos frio, se queremos ajuda para contrariar a tirania do corpo. Trazem comida dos restaurantes solidários de Leiria e levam a alma cheia desta coisa intangível e magnífica que se chama gratidão.

Estes malucos são do Atlas, associação que está a implementar o projeto Velhos Amigos. E eles precisam de mais voluntários. Se também és maluco que chegue inscre­ve-te em secretariadoleiria@atlaspeople.net. Ficamos à vossa espera.

(texto publicado na edição de 20 de fevereiro de 2014)