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Aprender com o degelo tecnológico no tempo de frigoríficos e novas profissões

No século XIX, uma ideia pouco convencional valeu uma fortuna a um empresário, mas acabou derrotado pela inovação tecnológica. Dois séculos depois, a história repete-se: a mudança varre o mundo do ensino, das empresas e do trabalho. O que está a mudar?

Frederic Tudor teve uma ideia de negócio, no século XIX, que lhe rendeu uma fortuna. Avançou com a venda de gelo natural extraído dos lagos do norte dos Estados Unidos enviando-o para o sul, onde o clima era mais quente.

Apesar das dúvidas que poderiam ser suscitadas pela ideia, Tudor não desistiu e desenvolveu métodos para preservar o gelo durante o transporte, como isolamento e embalagens adequadas. É que, naquela altura, frigoríficos e outros métodos mais avançados de preservação e refrigeração eram apenas uma miragem.

Tudor conseguiu criar um império, comercializando gelo para regiões mais quentes, expandindo seu negócio para além das fronteiras dos Estados Unidos, sendo que a venda de gelo, transportado durante quatro meses, por navio, até à Índia, revelou-se um dos seus negócios mais lucrativos.

A sua inovação, visão empreendedora e uma compreensão das necessidades do mercado fizeram dele um dos empresários mais ricos do seu país. E até à invenção do frigorífico, a sua vida empresarial foi plena de sucesso. De facto, a criação do frigorífico e a sua ampla difusão, fez cair um gigantesco negócio e os empregos que lhe estavam associados.

Os tempos são, atualmente, bem diferentes. Contudo, há negócios que se desfazem com o calor da inovação, cedendo perante as mudanças em curso. Como icebergues gigantescos, alguns sectores da economia estão agora em pleno e acelerado degelo. E nada será como antes. “O rápido avanço da inteligência artificial(IA) tem cativado o mundo, causando tanto entusiasmo quanto alarme, e levantando questões importantes sobre seu impacto potencial na economia global. O efeito líquido é difícil de prever, já que a IA irá espalhar-se pelas economias de maneiras complexas. O que podemos dizer com alguma confiança é que precisaremos desenvolver um conjunto de políticas para aproveitar com segurança o vasto potencial da IA para o benefício da humanidade”. A análise é feita por Kristalina Georgieva, diretora executiva do FMI. O Fundo Monetário Internacional está ciente das grandes mudanças em curso e num artigo da sua líder deixa claro que cerca de 40% do emprego global está exposto à inteligência artificial, sendo que esta tem o potencial de impactar não apenas tarefas rotineiras, mas também empregos altamente qualificados. Nas economias avançadas, aproximadamente 60% dos empregos podem ser afetados pela IA. Destes, metade poderão beneficiar de um processo de integração de IA, aumentando a produtividade, mas outra metade está exposta à redução da mão de obra e consequente baixa de salários.

Já nos países emergentes, a exposição à IA é menor, mas a falta de infraestruturas e de mão de obra qualificada, podem dificultar a sua adoção, uma situação que poderá contribuir para aumentar o risco de a tecnologia agravar a desigualdade entre nações.

A chave é “identificar novas oportunidades”, considera Werner Vogels, responsável pela tecnologia da Amazon, citado recentemente num artigo do jornal Público. Nele, este responsável, conhecido também por se aventurar em previsões de tendências da tecnologia, antecipa que até mesmo os programadores deixarão de ser essenciais para realizar aplicações ou programas online, muito graças à evolução da IA, capaz de simplificar processos e tarefas.

Também ao nível da educação, Werner Vogels aponta para a tendência deste sector se adaptar à rápida inovação tecnológica, enfatizando a importância de novos modelos de aprendizagem e formação para acompanhar o ritmo da evolução tecnológica. Essa mudança permite que pessoas de diversos perfis encontrem oportunidades de aprendizagem personalizadas e atualizadas, capacitando-as para enfrentar os desafios do mercado de trabalho contemporâneo.

Estas novas tecnologias não deixam, de ser um grande desafio para todo o sector da educação. Num relatório do final de 2023, a UNESCO salienta que o uso de IA generativa na aprendizagem apresenta desafios sem precedentes para os sistemas educacionais. Por um lado, admite, estas novas ferramentas podem ser inestimáveis ao proporcionar apoio personalizado aos estudantes, especialmente aqueles com deficiências ou que vivem em áreas remotas. Por outro lado, também surgem questões sobre a divisão digital, confidencialidade dos dados e a predominância de grandes empresas globais neste setor. Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), é urgente a adoção de regulamentações para garantir que o uso de IA na educação permaneça focado no melhor interesse dos estudantes.

De facto, em muitos aspetos, poderemos estar num ponto que nos remete para a disrupção dos tempos em que Frederic Tudor era rei do gelo. A mudança está em curso, tal como vem sendo evidente nos últimos anos. A dificuldade permanece em perceber a sua amplitude e impacto.

Mais empregos no futuro? Quais?

Esta questão é, porventura, central na tentativa de perceber a tendência que agora se escreve. Há quem tema que o acelerado passo das tecnologias seja um destruidor líquido de emprego, apesar das novidades que acarreta para o mercado. Por outro lado, alguns defendem que os receios com os impactos das tecnologias não são novos e que a produção de riqueza e a criação de emprego continuarão.

Segundo o Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional (CEDEFOP), agência da União Europeia, o futuro terá impacto na forma como os empregos se vão formatar. Na sua antevisão para esta década, a agência aponta que até 2030, “o emprego total em Portugal aumentará, impulsionado pela criação de novos empregos nos serviços administrativos, de TIC e de fornecimento de energia”. Ainda de acordo com o CEDEFOP, “as ocupações esperadas para criar a maioria das novas vagas de emprego são os profissionais associados de escritório, os profissionais de escritório e os investigadores e engenheiros”. Feitas as contas, ainda de acordo com os dados desta agência, mesmo incluindo as substituições para vagas de emprego desocupadas, no total das novas vagas no mercado de trabalho, quatro em cada cinco exigirão qualificações de nível alto ou médio.

Contudo, uma vez que o mercado de trabalho do presente, e também do futuro, não se escreve apenas nas fronteiras lusas, é relevante sublinhar que na União Europeia, o crescimento futuro do emprego até 2035 é estimado em 5,5%. Oscila, de país para país. A Bulgária, com um decréscimo de quase 11% apresenta o resultado mais negativo enquanto o máximo é de 24,5 para Malta. Além de Malta, Irlanda e o Luxemburgo lideram o crescimento do emprego na Europa. Em Portugal, no cômputo geral, a previsão é de um ligeiro acréscimo do emprego, até 2035 (0,5%).

Um olhar mais aprofundado, baseado no boletim de previsão para Portugal (2023 skills forecast), revela que esta agência calcula que, no nosso país, serão criados 2,9 milhões de empregos até 2035, a grande maioria (95%) serão empregos de substituição, e apenas 5% serão novos empregos. Antevê igualmente um crescimento de 44% na procura por profissionais altamente qualificados.

No que se refere à criação de novos empregos, o CEDEFOP aponta para 71 mil novos Profissionais Associados de Negócios e Administração (Business & administration associate professionals), ou seja, pessoas que trabalham em funções de suporte e assistência dentro de ambientes empresariais e de administração. Seguem-se 67 mil novos trabalhadores de Cuidados Pessoais, isto é, profissionais que prestam assistência direta e cuidados a pessoas que precisam de apoio nas suas atividades diárias devido a limitações físicas, cognitivas ou outras necessidades especiais. Está igualmente prevista, no topo dos novos empregos, a criação de 66 mil novos Profissionais de Negócios e Administração: aqueles que trabalham em uma ampla gama de funções relacionadas à gestão e administração dentro de organizações comerciais, instituições governamentais e entidades sem fins lucrativos. Quase metade (51%) das vagas de emprego totais que se espera que sejam criadas em Portugal até 2035, exigirão qualificações de alto nível, cerca de 5 pontos percentuais a menos do que a média da UE-27. A outra metade (49%) das vagas de emprego totais, exigirá qualificações de nível médio, aponta o relatório.
A previsão desta agência refere ainda que o total de vagas de emprego é maior entre Profissionais Associados de Negócios e Administração, Trabalhadores de Cuidados Pessoais e Trabalhadores de Vendas. Entre as ocupações mais qualificadas, espera-se que Profissionais de Ensino, Profissionais de Negócios e Administração e Profissionais de Saúde tenham o maior número total de vagas de emprego.
No entanto, o relatório também constata que existem algumas divergências entre aquilo que o mercado necessita e a oferta disponível. É que “a estrutura de qualificação da oferta de trabalho em Portugal está a mudar significativamente”, refere o relatório. Anteriormente, explica ainda, “a principal oferta de mão de obra era de baixa qualificação, enquanto os novos graduados tendem a ter qualificações mais elevadas ou intermediárias nos dias de hoje. Existe procura por essas qualificações por meio de ocupações de nível superior. No entanto, alguns profissionais altamente qualificados podem não encontrar emprego adequado ao seu nível de qualificação. Parece haver escassez de pessoal de baixa qualificação para substituir trabalhadores mais antigos no extremo inferior, mas também para alguns sectores em crescimento”, constata. Consequentemente, “espera-se que haja escassez nessas ocupações, o que levará a dificuldades na contratação”.

Que cursos ajudam no emprego?

Apesar de algumas divergências e ajustes, o certo é que em Portugal, há uma tendência de já alguns anos que se mantém: os cursos na área da saúde lideram na lista de empregabilidade. De facto, por cada dez diplomados em cursos com emprego zero, sete são dos cursos de Medicina e Enfermagem.

No total, de acordo com os dados do Portal Infocursos, em julho do ano passado, contabilizavam-se 8.917 diplomados em cursos com desemprego zero. Destes, 3.628 são diplomados em Medicina e 2.552 em enfermagem. Ortóptica e Ciências da Visão, Psicologia, Engenharia Informática e de Computadores, Música, Engenharia Informática e Educação Básica, são outros cursos com mais de uma centena de diplomados e que não contabilizam desempregados. Estes dados de empregabilidade, todavia, não são estanques, pois variam de acordo com a instituição. Ou seja, um mesmo curso pode ter mais empregabilidade numa universidade que noutra: há cursos que têm baixa taxa de desemprego numa instituição e têm muitos mais desempregados noutra. Ainda assim, importa frisar que nesta lista de quase meia centena de cursos sem desemprego, consta Biotecnologia, curso ministrado pela Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar de Peniche do Politécnico de Leiria, o único do distrito neste universo. O Politécnico de Leiria conta ainda com alguns cursos com taxas de desemprego inferior a 1 por cento: Enfermagem (0,5%) e Engenharia Informática (0,8%).

Salário triplica consoante habilitações

Independentemente da escolha, parece certo que optar por estudar pode compensar. A empregabilidade de uma dada área profissional é relevante, mas não é menos importante levar em conta a questão salarial. Claro que quando traçamos um percurso profissional ou formativo, não podemos ignorar a vocação e aquela que é a nossa preferência e apetência. É, ainda assim, frequente ouvir que estudar não compensa. Cada um fará a avaliação que entender sobre esta questão. Contudo, se olharmos apenas do ponto de vista financeiro, é importante saber que o investimento nas qualificações tende a resultar em maiores ganhos salariais.

São os dados estatísticos que nos indicam essa tendência: quem tem um maior grau de escolaridade, em média, ganha mais. É assim no país e na região. Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes ao ano de 2021 – o último disponível – deixam claro que há uma disparidade salarial assinalável entre níveis de habilitações.

Para melhor visualizarmos esta realidade, levemos em conta os dados nacionais e os de Leiria, por exemplo. Assim, em Portugal, o ganho médio mensal era de 1.289,50 euros. Ou seja, aquele era, mensalmente, em 2021, o montante ilíquido em dinheiro e/ou géneros, pago ao trabalhador, por tempo trabalhado ou trabalho fornecido no período normal e extraordinário. Importa lembrar que este valor inclui, ainda, o pagamento de horas remuneradas, mas não efetuadas (férias, feriados e outras ausências pagas). Em Leiria, o valor médio era ligeiramente inferior, cifrando-se em 1.202,62 euros. O que acontece, no entanto, se olharmos para os valores pagos consoante a habilitação académica do trabalhador?

Neste caso, as diferenças são notórias. Em Portugal, o ganho médio mensal era de 854,73 euros para trabalhadores com habilitação inferiores ao primeiro ciclo do ensino básico, 1.012,07 euros com o terceiro ciclo do ensino básico, 1.160,85 euros com o ensino secundário e 1.936,72 euros se o trabalhador for licenciado.

Em Leiria, o panorama é semelhante, ainda que a diferença entre níveis de habilitação seja mais estreita: 938,25 de remuneração para quem não completou o ensino básico, 1.081,88 euros para trabalhadores com o terceiro ciclo completo, 1.112,33 para quem completou o secundário e 1.554,13 euros para licenciados. O reforço da formação pós-graduada também tem acentuado impacto no salário. Em Portugal, o ganho médio mensal de um doutorado é de 2.790,85 euros, mais do triplo do ganho de quem não tem nenhum ciclo de ensino completo.

Há quase dois séculos, Frederic Tudor teve uma ideia de negócio que, parecendo pouco exequível, lhe garantiu uma fortuna. Sucumbiu, todavia, face à mudança impulsionada pela tecnologia.

Este é o desafio com que nos deparamos: mesmo o que parece ser um caminho de sucesso garantido, pode, de um momento para o outro, mudar. É por essa razão que o percurso formativo e profissional é, cada vez mais, um caminho em gelo fino, sempre atentos às mudanças e com capacidade de adaptação.