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Musicalmente: O gato da bisavó Helena

Ainda me lembro, vagamente, da minha bisavó materna. Chamava-se Helena e morreu era eu menino de muito tenra idade. Não me recordo se alguma vez cantou para mim, nem de resto me recordo da sua voz.

Paulo Lameiro, diretor artístico da Musicalmente paulo@musicalmente.pt

Ainda me lembro, vagamente, da minha bisavó materna. Chamava-se Helena e morreu era eu menino de muito tenra idade. Não me recordo se alguma vez cantou para mim, nem de resto me recordo da sua voz. Visitava-a num quarto escuro lá de casa, ornamentado de santos, muitos santos, e algumas fotos de tios e primos.

Um gato aos pés da cama seria o principal motivo que me levava até à sua beira. A ela associo esse gato, mais um tareco na longa genealogia de gatos na família, que decidiu abandonar a casa para um terreno anexo no dia em que morreu a bisavó Helena.

Ali morreu seco poucos dias depois, numa cama que improvisou de palha de feijão, recusando-se a beber ou comer o que quer que fosse. Há gatos para quem a vida só faz sentido na companhia de alguém.

Lembro-me do som daquele miar como se ainda hoje ali estivesse. Aflito, asmático, estranhamente agudo, num decrescendo longo qual sinfonia romântica. Ele queria dizer alguma coisa. Assim se comentava lá por casa e se davam palavras àqueles miares. Mais tarde descobri que eram as pessoas que queriam dizer coisas, e punham na voz do gato os seus pensamentos. Hoje sabemos que o gato também queria mesmo partilhar sentimentos e afetos.

Guardei na minha memória esses sons, vindos da terra de amanho ao lado de minha casa, cuja expressividade e riqueza estimulavam palavras e ideias mil que depois cozinhávamos em família.

(texto publicado a 28 de fevereiro de 2013)