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O meu diário: Orçamento

A D. Alzira é, como ela diz, mulher que passou uma guerra e sobreviveu ao Salazar. Não havia médico de família, nem carros, nem televisão e a gente não morreu. Dividíamos uma sardinha e comíamos broa e couves.

Helena Vasconcelos, médica hml.vasconcelos@gmail.com

Já não se pode ouvir falar em orçamento, crise, austeridade e desgraças que tais. Sei que o país sofre, que o povo sofre e se revolta e que aquilo que é para mim uma diminuição franca do meu income financeiro é para muitos uma desgraça efetiva, sentida e duradoura. Não podemos ignorar esta desgraça de todo, mas escusamos de fazer dela o sentido de 24 horas das nossas vidas. Existe mundo para além da crise e vida para além da política e há coisas que ninguém nos pode tirar, ou não deve, ou não podemos deixar.

O clima de pânico é fácil de se estimular, basta para isso que todos os órgãos de comunicação social o alimentem, o fomentem e o estimulem. Lembram-se da gripe A, todos à espera de morrer no inverno e afinal a coisa foi ridiculamente frustrante? Não que a analogia seja perfeita mas reflete o modo como os media nos influenciam e nos condicionam.

A D. Alzira é minha utente do SNS, veio à consulta e queixou-se do preço dos medicamentos, que não tinha dinheiro que chegasse para todos. Ela divertida dizia que selecionava por meses. Um mês não tomava o do coração, outro mês, o do estômago e assim sucessivamente. Só o de dormir é que não podia falhar porque senão não conseguia adormecer a pensar naquele que tinha rejeitado. Dei-lhe uma ajuda e fiz uma lista por ordem de prioridade desde o mais importante até ao mais dispensável. Se deixar de comprar, deixe estes dois e nunca este. Este daqui pode parar por algum tempo e fazer só daqui a três meses e ela lá ia repetindo comigo para verificar que tinha aprendido a lição. Depois, e perante a minha cara de desaire, consolou-me dizendo que ainda não passava fome e que também já não comia muito porque uma pessoa depois de certa idade já não deve comer tanto, que só engorda. A D. Alzira é, como ela diz, mulher que passou uma guerra e sobreviveu ao Salazar. Não havia médico de família, nem carros, nem televisão e a gente não morreu. Dividíamos uma sardinha e comíamos broa e couves. E sabe doutora, não havia orçamentos. Ai não? E isso é mau? Então não é doutora, o orçamento é aquilo que está a provocar a desunião no nosso povo. A doutora não vê na televisão tudo à pancada? Vejo, vejo e então como se resolve o assunto? É – desculpe que eu sei escrever o meu nome mal, sou quase analfabeta – dar menos dinheiro a esses políticos e acabar com o orçamento ou pelo menos não estar a falar nele a toda a hora. Concordo e sei escrever o meu nome bem.

(texto publicado a 19 de outubro de 2012)