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Peniche

Semanas de férias em Portugal são anos de vida para as crianças de Chernobyl

Ainda não tinham nascido quando se deu o desastre nuclear de Chernobyl. Apesar disso, há uma herança pesada que carregam no corpo, mas que quatro famílias de Peniche tentam aliviar com praia, boa alimentação e muito carinho.

Bogdan, Sergei, Mark e Ania no Cabo Carvoeiro

Virada para a Papoa, quase em cima do mar, a casa de Maria João e Hernâni Leitão teve um impacto em Ania Kot que os três ainda hoje recordam. Nas primeiras férias em Portugal, a menina ucraniana ficou perplexa com o horizonte azul de Peniche. Nunca tinha visto nada que se assemelhasse àquele mar e, no francês que a escola já lhe ensinara, exclamou: “la mer est grande!” (o mar é grande).

Maria João conta que, nos primeiros tempos, era frequente Ania chegar ao pé dela e dizer: “Maria, eu vai cheirar o mar”. Abria a porta, respirava fundo e voltava.

Hoje com 17 anos, continua embevecida pelo mar de Peniche. Foi cá que aprendeu a nadar depois de ultrapassar o medo. “Ela só quer é adrenalina, venham ondas”, diz Maria João a rir.

Ania Kot surge quase todos os anos nos órgãos de informação portugueses. Foi uma das primeiras crianças a integrar o projeto “Verão Azul” da Associação de Colaboradores da Liberty Seguros. O objetivo é proporcionar às crianças de Ivankiv, uma cidade a 50 quilómetros de Chernobyl, um período de férias em Portugal. Sol, praia, boa alimentação e carinho são a essência deste programa de férias, explica o coordenador Fernando Pinho.

E são notórias as diferenças físicas que se registam à chegada e à partida. Às famílias que se estreiam no “Verão Azul”, Fernando Pinho sugere sempre que tirem uma fotografia quando as crianças chegam e quando partem para que se apercebam verdadeiramente das diferenças.

Maria João e Hernâni dão como exemplo o brilho do cabelo, a cor da pele, a postura. Ania reconhece as vantagens destas semanas em Peniche tanto nos seus problemas respiratórios, que diminuíram, como ao nível do aparelho digestivo. Garante que melhora “com estas vitaminas, com este ar, com estas pessoas…”, diz efusivamente apontando para o casal.

Nem todos se adaptam tão rapidamente. Para Ania nem a língua foi barreira, lembra Hernâni. Os gestos, as palavras soltas que rapidamente aprendeu e o facto de falar francês viabilizaram a comunicação. Logo no primeiro ano, quando deixou Portugal, já se entendiam mutuamente.

Momentos difíceis também os houve. “Quando telefonava à mãe, às vezes chorava, mas escondia-se” e, no início, nem toda a comida a seduziu. Também estranhou as pessoas, “tão abertas”, que lhe diziam “Ah tão linda! Beijinhos” e que sempre perguntavam “Como estás? Tudo bem?”.

Hoje já não passa sem o verão de Peniche e sem “estas pessoas”. “Este programa mudou muito na minha vida”, diz Ania, “elas são a minha família, fazem parte do meu coração, faz muito bem para mim, é outra vida”.

Ania estuda na universidade em Kiev. Optou por turismo, porque gosta de história, geografia e línguas, mas também porque sabe que, em Portugal, há portas que se podem abrir, contrariamente ao que acontece na Ucrânia.

Famílias de Peniche e crianças de Chernobyl fotografadas no Cabo Carvoeiro
As famílias de acolhimento de Peniche e as crianças no Cabo Carvoeiro. Da esquerda para direita: Hernâni Leitão, Bogdan, Maria Baptista, Ania, Maria João Leitão, Gina Viola, Sergei, Carlos Viola, Mark e Susana Roquete

Além de Maria João e Hernâni, há mais três casais de Peniche a acolherem crianças de Chernobyl. Gina e Carlos Viola são a família portuguesa de Sergei. Tem 14 anos e há sete que passa férias em Portugal.

No início não foi fácil. A língua foi a maior dificuldade e Sergei chorava. “Tinha sete anos e tinha saudades dos pais”, conta Gina.

Para o casal tudo era novidade e, por vezes, de difícil interpretação. Sergei dormia muitas horas, mais de 12 se fosse preciso, com um sono muito agitado, próprio da exposição à radioatividade, segundo se informou Carlos Viola.

Depois Sergei “foi começando a conhecer-nos e a entrar nas brincadeiras”, diz Gina. E começou a apreciar o que Portugal lhe proporcionava. “Gosta muito de fruta, lá não têm dinheiro para comprar”, sobretudo banana, pêssego e frutos em calda que, no primeiro ano, pediu para levar para a Ucrânia.

Tal como Ania, Sergei nunca tinha visto mar. “Gostou imenso e até já aprendeu surf”, conta Carlos Viola enquanto tenta extrair algumas palavras ao tímido Sergei. Nada feito, “está envergonhado, mas até é um menino divertido”, assegura Gina.

O casal afirma ter tido “muita sorte”. Receber crianças de contextos tão difíceis é um tiro no escuro e desde o início do projeto já houve casos em que nem tudo correu bem. Mas “o Sergei é muito educado, muito carinhoso, nunca se vai deitar antes de dar um beijinho de boa noite e à mesa agradece sempre o comer”.

Também se mostra disponível para ajudar na lida da casa e há tarefas que lhe estão reservadas. “Quando Sergei for para a Ucrânia quem é que vai despejar o lixo?”, pergunta. “Guardamos tudo no quintal e quando o Sergei voltar vai despejar”, brinca Carlos.

O menino já é da família. O casal tem dois rapazes maiores e a vinda de Sergei foi como “voltar a ter um filho”. O relacionamento deste com os “irmãos de verão” é muito bom, sobretudo com um deles, a quem se afeiçoou desde o primeiro momento.

Bogdan e Sergei, de 14 anos, com Mark, de 10

O mesmo sucede com Bogdan ou Boguinhas como é tratado em casa de Maria e José Baptista. É o quarto ano que vem. Gostou muito das filhas do casal, sobretudo de uma delas. No início “chorava porque elas brincavam com outras crianças e ele tinha ciúmes”, conta Maria. Agora está mais apaziguado, mas ainda sofre com a separação.

Boguinhas também tem 14 anos e são-lhe reconhecidos os mesmos atributos de Sergei: educação, respeito, gratidão. “Tudo o que damos à hora da refeição agradece sempre”, “é um miúdo que nunca quer nada” e “o que ele possa levar guarda tudo”.

Habituadas a pouco, estas crianças não se deslumbram com o muito que por cá encontram. Susana Roquete, que acolhe Mark há três anos, aponta essa como uma das aprendizagens que esta experiência lhe tem proporcionado. “Aprendemos um bocadinho com ele e com a vida dele. Tudo é fácil cá e tudo é difícil para ele, mas não é por isso que deixa de ser uma criança feliz”.

A adaptação de Mark, atualmente com 10 anos, “foi fácil”. “Não fala muito dos pais”, conta Susana. Tem um irmão com uma deficiência que também está em Portugal e uma irmã que costuma integrar um programa de férias em Espanha, mas que Mark gostava de trazer para Peniche.

A Liberty Seguros tem optado por não atribuir duas crianças a uma mesma família, mas Susana confessa que não se importava de também acolher a irmã de Mark. “Tenho três filhos e sou professora, estou habituada a crianças”.

“Muita felicidade” é o que os meninos de Chernobyl têm trazido às quatro famílias. “Eles já se afeiçoaram a nós”, diz Maria Baptista para quem o Boguinhas é tratado como se fosse um filho.

Os laços de afeto que se criaram com estas crianças dão, à chegada, nervosismo e ansiedade. Na hora da partida, sente-se tristeza. Por isso, no próximo domingo, quando embarcarem de regresso à Ucrânia, já não será o mar de Peniche a salgar-lhes o rosto, mas as lágrimas da despedida.

Quem fica também sofre. “A casa fica sem vida e tudo nos faz lembrar dele”, diz Gina Viola que confessa demorar uma a duas semanas a recompor-se da partida de Sergei.

Em Peniche ficam as fotografias e os presentes que as crianças receberam, mas não podem levar. Ania sabe que o seu espaço em casa de Hernâni e Maria João permanecerá intocado. “Ela é da família”, há um quarto que é só seu. E um lugar no coração também.

Cenário na Ucrânia é desolador

Todos os anos Fernando Pinho vai aos arredores de Chernobyl “escolher” as crianças que vêm para Portugal. Admite que já encontra o trabalho adiantado pela mão do centro estatal ucraniano com o qual foi firmado um acordo. Ainda assim, “não há nenhuma criança que venha que eu não tenha visto antes”, garante o coordenador.

A tarefa de escolher não é fácil. Uma reportagem no site da ACLIS – Associação de Colaboradores da Liberty Seguros ajuda a perceber porquê, mas Fernando Pinho garante que a realidade é pior do que as imagens. “Há casas em que nem conseguimos entrar, só vendo”.

Hernâni Leitão e Carlos Viola já estiveram na Ucrânia e confirmam o cenário descrito por Fernando Pinho. Maria João conta que, quando o marido regressou, veio a chorar quase todo o caminho do aeroporto até Peniche. Hernâni ainda se emociona quando recorda a viagem e o bolo que Ania tinha feito para o receber.

Carlos Viola relata que, naquela zona da Ucrânia, vive-se como em Portugal há 50 anos, com a agravante de se consumir o que um solo contaminado produz. “Ou morrem à fome ou comem aquilo”.

Os meninos que têm vindo para Peniche são de famílias estruturadas, que não conhecem a situação de miséria que Fernando, Hernâni e Carlos presenciaram e com a qual alguns casais portugueses já tiveram de lidar.

Crianças que nunca tinham usado uma casa de banho ou que, na primeira semana, fizeram ressaca de álcool, são alguns dos relatos mais chocantes.

“Há um estudo francês, já de há uns anos, que diz que estas cinco ou seis semanas que as crianças cá passam correspondem a acrescentar-lhes um ou dois anos de vida. Esse é o ADN do nosso projeto, é aquilo que nos move”, afirma Fernando Pinho.

Cerca de 120 crianças ucranianas já tiveram direito a um “Verão Azul” em Portugal. O projeto começou exclusivamente com funcionários da Liberty, mas foi sendo alargado a familiares e amigos. Hoje são mais de 30 as famílias de acolhimento. A seleção é criteriosa, explica o coordenador, “não podemos correr riscos nenhuns”.

A seguradora gasta anualmente entre 50 a 55 mil euros com o projeto, mas Fernando Pinho assegura que “a satisfação que se sente em ter ajudado uma criança não tem preço: o que se dá é muito menos do que aquilo que se recebe”.

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