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Sociedade

Jovens reclusos de Leiria trocam emoções com estudantes do secundário e do ensino superior

O projeto “Cá dentro, Lá fora/Lá dentro, Cá fora” uniu estudantes da Escola Superior de Ciências Sociais do Politécnico de Leiria, da Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo e um grupo de 22 jovens da “prisão-escola”.

Jovens reclusos de Leiria e estudantes do secundário e do ensino superior trocaram emoções, dúvidas e conselhos através do desenho, poemas ou pequenas mensagens, inscritas em diários gráficos, que durante quatro meses viajaram entre estabelecimentos.

António Muambuco está detido no Estabelecimento Prisional de Leiria Jovens. Começou a escrever o que lhe ia na alma no diário e agora assume que a escrita tomou conta de si: “Fazia uns desenhos a condizer o que estava a sentir e escrevia algumas palavras de positividade. Foi bom libertar o que sentia. Comecei a escrever cartas, que mando para casa. Foi uma oportunidade para transmitir os meus sentimentos a outra pessoa”, contou à agência Lusa.

Também Gabriel Ramos admitiu que, agora, escreve sempre que tem tempo, seja palavras motivacionais ou o que está a sentir no momento: “Descobri que consigo escrever e que isso me faz bem”.

“Cá dentro, Lá fora/Lá dentro, Cá fora” é um projeto que uniu estudantes da Escola Superior de Ciências Sociais do Politécnico de Leiria, da Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo e um grupo de 22 jovens da “prisão-escola”, que visou a correspondência semanal e o seu registo gráfico em diários, entre jovens dos 17 aos 23, anos em contextos diferentes.

Não faziam ideia com quem se correspondiam, qual a idade e o género. Os projetos eram assinados com um pseudónimo. Os sentimentos e incertezas, que assolam os jovens, são comuns, apesar de estarem em contextos diferentes.

Assumem que era um refúgio e uma forma de libertarem o que sentem e admitem que há quem possa estar livre fisicamente, mas preso dentro de si.

“Há pessoas que estão lá fora e estão piores que nós”, afirmou Miguel Gonçalves, outro dos reclusos que participou no projeto.

“A liberdade acaba por ser subjetiva. Cada um tem a interpretação do que é a liberdade”, acrescentou José Fernandes, que começou por se corresponder através do desenho, mas depois aventurou-se na escrita.

Com jeito para o desenho, mas também para a criação de música, Hélio Rodrigues escreveu alguns versos musicais, que transmitiam as dificuldades por que já passou, situações não muito diferentes das que passam outros jovens da sua idade. “Não há motivo para baixar a cabeça e desistir”, tentou transmitir.

O mesmo objetivo teve Gabriel Ramos, que procurou incentivar os outros, com palavras manuscritas ou através de colagens, dando “forças para quem estava lá fora a passar por um momento difícil”.

“Esta foi uma maneira de mostrar às pessoas que estão lá fora que somos todos iguais, não é por termos cometido um erro que somos diferentes dos outros jovens. Mostrámos que alguns, aqui, também têm talento”, sublinhou José Fernandes, ao confessar que, para si, “foi uma libertação de alguns sentimentos”.

Miguel Gonçalves entende que este projeto teve ainda uma tónica de reinserção social, “ao mesmo tempo que deu para perceber que não é só cá dentro que há problemas, que a vida lá fora também é difícil”.

Desanuviar e libertar o stress é como Guilherme Ferreira sentiu a sua participação nos desenhos que foi rabiscando no seu diário, que transmitiam as suas emoções. Aguardava ansioso pelo regresso do diário e gostava de algumas coisas que via. “Dava para perceber se estavam tristes ou felizes. As cores mostram muitas coisas”.

Dentro dos diários gráficos viajaram mensagens de encorajamento e motivação: “Ensinámos a não baixar a cabeça aos problemas e a manter sempre a cabeça erguida, independentemente das circunstâncias. Por mais que pareça difícil, dá sempre para superar e há sempre alguém pior que nós”.

Pedro Correia, aluno finalista de Educação Social na ESECS, experimentou a técnica do doubling em desenho para exprimir o que sentia, mas considerou que a parte escrita do projeto “foi a mais interessante, porque muitas vezes havia mesmo troca de correspondência, com respostas a perguntas e conselhos, mesmo sem saber com quem se estava a falar”.

Este jovem elogiou a arte de um aluno recluso, que “compôs letras musicais espetaculares”. “É uma pessoa extremamente expressiva e conseguiu passar os seus sentimentos para o papel. Tivemos um momento em que nos encontrámos fisicamente com eles e percebemos que os diários eram um escape. O interessante é que da nossa parte sentimos exatamente a mesma coisa”, confessou Pedro Correia, ao considerar que o ponto mais forte deste projeto foi a componente sociopedagógica.

“A prisão deve ser vista como um meio de capacitar e incentivar as pessoas a contribuir e a participar ativamente na sociedade para poder construir algo melhor. Conseguimos isso através da pedagogia e destes projetos”, defendeu o estudante.

Ricardo Henriques, outro estudante da ESECS, tentava coisas diferentes sempre que tinha o diário. “Expressava-me como me vinha à cabeça. Escrevia emoções que sentia na altura e passei-as para desenhos. Era despejar o que estava cá dentro”, contou.

“Percebemos que os jovens reclusos são pessoas como outras quaisquer, com emoções, com desejos e com sonhos. Podem ter cometido um crime, mas isso não os define. Escreviam sobre a família e desenhavam abraços. Querem carinho como nós”, acrescentou.

Ângelo Teixeira e Andreia Pinheiro foram dois dos alunos do 12.º ano da turma de Artes Visuais que trocaram correspondência com os outros jovens através do desenho. Não tinham a liberdade dos outros, pois a sua participação tinha um tema dado pelo professor. Tiveram de dar azo à criatividade para desenhar janelas.

“No início, estava um pouco triste, porque me empenhava muito nos meus trabalhos e os deles eram muito pobrezinhos. Mas eles foram melhorando. Às vezes, chegavam-nos poemas ou desenhos de grades”, contou Andreia Pinheiro.

Para Ângelo Teixeira, este foi “um projeto interessante”. “É conversar com eles de maneira diferente. Alguns já enviavam mensagens com emojis”.

Projeto estende-se a estudantes com mais de 60 anos

O projeto “Cá dentro, Lá fora/Lá dentro, Cá fora” vai agora estender-se a estudantes +60 do Politécnico de Leiria.

A primeira fase do projeto, que uniu estudantes da ESECS, do Politécnico de Leiria, da Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria, e um grupo de 22 jovens do Estabelecimento Prisional de Leiria Jovens, chegou ao fim, mas o balanço superou as expectativas.

A mentora do projeto e docente na ESECS, Filipa Rodrigues, revelou à agência Lusa que esta iniciativa vai agora ser desenvolvida de forma voluntária com os estudantes internacionais e do programa 60+ do Politécnico de Leiria.

Os estudantes estrangeiros acabam por ter alguns sentimentos idênticos ao dos reclusos, por se encontrarem longe da família e das suas terras, constatou a professora, ao referir que o projeto mantém a colaboração com os jovens do secundário, agora de outra turma. Filipa Rodrigues espera que o projeto arranque no final do mês e termine em junho.

“Cá dentro, Lá fora/Lá dentro, Cá fora” foi um projeto-piloto que surgiu no âmbito do programa “Link me up – 1000 ideias”. Um grupo liderado pela docente da ESECS desenvolveu um projeto ligado a mulheres reclusas e, com todo o conhecimento adquirido, Filipa Rodrigues aventurou-se num novo desafio, agora com jovens reclusos.

“Os nossos objetivos eram sempre a questão da partilha, de estabelecer uma relação com alguém que está agora detido, mas que integrará a sociedade quando acabar de cumprir a pena”, explicou a docente.

Para a animadora educativa sociocultural Vera Piedade, este foi um projeto que motivou os jovens reclusos, que ansiavam pelo momento em que se juntavam para receber os diários e utilizá-los para deixar fluir as suas emoções.

“Havia necessidade de escrever e de passar para o papel as emoções e os desabafos. Há um diário que está muito engraçado, em que uma jovem escreveu um desabafo e quase todos queriam responder. Um dos nossos escreveu: ‘Lembra-te sempre que a vida é bela e ainda tens muito para viver’”, contou à Lusa Vera Piedade.

A animadora educativa sociocultural acrescentou que havia jovens “que vinham muito inquietos” e confessavam que “iam de outra forma para a cela”, depois de libertarem o que lhes ia na alma. “Ajudava a ficarem mais tranquilos”.

A guarda prisional Fátima Fachada acompanhou os reclusos durante os quatro meses que durou o projeto e constatou que os “problemas são comuns” a todos. “Não é por estarem privados de liberdade que não há tristeza e alegria, sentimentos que são inerentes à idade. Reparei que muitos jovens aqui sabem desenhar muito bem. Só precisam de uma orientação. Quando se quer, o bem vem ao de cima”.

No balanço do projeto com os reclusos, Miguel Gonçalves lançou o repto para que o projeto pudesse envolver agora idosos, que estivessem em lares da terceira idade. “São pessoas que se sentem descartadas e vão estar um pouco como nós à espera da visita, de um carinho”, revelou à Lusa o recluso.

Filipa Rodrigues afirmou que, nesta fase, não será possível envolver instituições particulares de solidariedade social, mas a correspondência intergerações vai concretizar-se com pessoas com mais de 60 anos, que integram os cursos do Politécnico de Leiria.

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