Assinar

Cidade imaginária: A chave

Imóvel, o capitão fitava um ponto atrás de si. Lita estava consciente da exclusão, mas não podia resistir ao magnetismo daquele olhar tenso, concentrado no que sucedia longe dali.

Joao-bonifacio-serra
João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com

Imóvel, o capitão fitava um ponto atrás de si. Lita estava consciente da exclusão, mas não podia resistir ao magnetismo daquele olhar tenso, concentrado no que sucedia longe dali. A espingarda à bandoleira, toda a linguagem corporal era de um militar em operações. No rosto, ela observou os traços do cansaço acentuados pela barba de um dia. Mas sobrepunham-se-lhes a determinação e uma espécie de alheamento relativamente ao burburinho à sua volta.

Muita gente confluíra para a praça, apinhando-se junto do cordão de jovens soldados de capacete que criara uma área de circulação para carros de combate, atiradores, emissários e comandos. Havia quem tivesse trepado às árvores e conseguido empoleirar-se em varandas.

À saída de Santa Apolónia, ao princípio da tarde, Lita comprara um cravo branco e correra até à Praça do Comércio. O impulso que a levara a sair do liceu, sem aviso, apanhar o primeiro comboio para Lisboa, fora a notícia de que uma força militar ocupara a Praça do Comércio, onde ficavam os ministérios. Havia militares e polícias nas arcadas, grupos de civis a conversar nas paragens de elétricos e autocarros. Junto de um deles, ouviu dizer que a revolução estava no Carmo. Tomou essa direção, sempre a correr.

Foi-se acercando do perímetro militar, o corpo magro e ágil de adolescente tirando partido dos vazios criados pelo movimento das pessoas. A urgência inexplicável que a impelira para aquele passo aventureiro era agora mais imperiosa.

Estava a dois passos do capitão. Era mais novo do que imaginara, talvez nem tivesse trinta anos. A camiseta branca despontava por baixo da camisa junto ao pescoço, o boné um pouco amarrotado e as pestanas dos bolsos levantadas nas pontas. Uma imagem, a preto e branco, que lhe lembrou o pai: uma dignidade austera, valores antigos de responsabilidade coletiva. Procurou o cravo que guardara na mochila entre os cadernos e o lanche, para lho atirar.

Sentiu que lhe puxavam o braço e ouviu a voz do Diogo, junto ao ombro: Avó, este aqui no cartaz é que era o capitão Salgueiro Maia? Sim – respondeu, estremecendo. – Foi ele quem derrubou os ditadores e nos entregou a chave para libertar a cidade.

O sol irrompera pela tarde, dissipada a névoa, os atiradores e emissários subitamente desaparecidos, os curiosos e manifestantes substituídos por visitantes dos lugares dos acontecimentos de há quarenta anos. Do outro lado, chegou-lhe a voz do Ari, o outro neto: – Avó, guardaste aquele cravo que eu desenhei? Procurou na carteira o pequeno desenho de um cravo branco em fundo cinza. – Sim, respondeu. – Vamos colá-lo na camisa do capitão.

(texto publicado na edição de 29 de maio de 2014)