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Cidade imaginária: Mobilidade e cartografia

Com espanto, descobri que este frequentador das livrarias de Paris, Londres ou Nova Iorque não era capaz de reconhecer a avenida dos Aliados ou a rotunda da Boavista.

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João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com

Percorríamos a rua da estrada da aldeia quando finalmente avistámos alguém a quem fazer a pergunta de automobilista. A mulher, cuja indumentária denunciava uma origem rural, encarou-nos com naturalidade quando parámos o carro à sua ilharga para inquirir sobre se aquela estrada nos levaria à barragem. – Os senhores desculpem, mas não sei dizer, respondeu em voz firme a nossa interlocutora. Pelos meus cálculos, podíamos estar a três ou quatro quilómetros da albufeira de Castelo do Bode, mas aquela habitante da aldeia próxima desconhecia onde levaria a estrada.

Prosseguimos a nossa rota tentativa, agora comentando o sucedido. E eu recordei uma situação similar, e igualmente surpreendente, com que me deparara em Manhattan, quando ali fui pela primeira vez, em 1988. Algures nas imediações de Central Park, pedi auxilio a uma mulher que passeava um cão, indicador de residente, sobre a localização de uma determinada praça. A mulher olhou para o meu mapa de turista e confessou delicadamente que apesar de ali viver há sessenta anos, nunca passara para o outro lado do Parque.

O acesso alargado à mobilidade geográfica é um fenómeno relativamente recente na história de humanidade. Embora todas as civilizações tenham recebido e gerado movimentos migratórios, e as guerras propiciado deslocações massivas a longas distâncias, a maior parte dos homens vivia e morria no mesmo local onde tinha nascido.

Mas já que trago hoje aqui relatos sobre este tema, não posso deixar de evocar dois episódios passadas com um dos meus amigos com uma das mais sólidas experiências cosmopolitas. Um dia fomos juntos ao Porto participar numa cerimonia oficial. Com espanto, descobri que este frequentador das livrarias de Paris, Londres ou Nova Iorque não era capaz de reconhecer a avenida dos Aliados ou a rotunda da Boavista.

Durante muitos anos, este meu amigo acompanhou politicamente o destino de Timor. Finalmente lograda a autonomia em liberdade do novo Estado, foi convidado para a cerimonia da independência. Da janela do avião militar que nos transportou de Darwin para Dili, ele ia identificando um a um os acidentes de relevo e da linha de costa de Timor Leste. – Mas tu nunca cá estiveste! – exclamei eu, admirado. – Pois não – respondeu. – É para isso que serve a cartografia!

(texto publicado na edição de 9 de janeiro de 2014)