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Cultura

Óbidos: Onde as palavras têm morada. A vida dentro da Cidade Literária da UNESCO

Desde 2015 que Óbidos é Cidade Criativa da Literatura da UNESCO. Mas o projeto começou anos antes, com livrarias, residências e festivais que hoje fazem da vila muralhada um ecossistema vivo, onde a literatura transforma espaços, pessoas e ideias.

Num mundo que avança ao ritmo da tecnologia, há lugares que escolhem seguir a cadência mais lenta da literatura.

Óbidos, vila muralhada de pedra e história, fez dessa escolha um projeto de vida. Desde 2015 que ostenta o selo de Cidade Criativa da Literatura da UNESCO, distinção que veio consolidar um ecossistema literário que já fervilhava de ideias. E que hoje continua a escrever, dia após dia, a sua narrativa coletiva, feita de livrarias em espaços improváveis, hotéis com alma de biblioteca, residências de escrita, encontros, festivais e gestos quotidianos onde a literatura deixa de ser objeto e passa a ser experiência.

Foi a 11 de dezembro de 2015 que Óbidos passou a integrar a Rede de Cidades Criativas da UNESCO no domínio da Literatura, tornando-se a segunda localidade portuguesa a entrar neste restrito grupo internacional.

Mas a semente deste ecossistema tinha sido lançada quatro anos antes, em 2011, com a criação do projeto Óbidos Vila Literária. Com um conceito assente na reabilitação de espaços devolutos e na dinamização cultural em torno do livro, da leitura e da criação, o projeto transformou esta vila muralhada num dos casos mais singulares de promoção integrada da literatura em Portugal — e numa referência lá fora.

A ideia da Vila Literária partiu de uma parceria entre o Município de Óbidos e a Ler Devagar, associação cultural e editora com forte implantação na área do livro e da promoção de leitura. Foi esta ligação que permitiu montar, num curto espaço de tempo, uma rede de livrarias com diferentes vocações e propostas, ocupando espaços desativados, como a antiga Igreja de Santiago (hoje uma das livrarias mais emblemáticas do país) ou o antigo mercado da vila.

Um dos que aceitaram esse convite foi Luís Gomes, proprietário da livraria Artes e Letras, que se mudou para Óbidos depois de mais de 30 anos de atividade livreira em Lisboa.

“Queríamos encontrar um sítio para um projeto novo. Estivemos mais de três décadas em Lisboa, mas a cidade mudou, e o espaço para livrarias independentes ficou cada vez mais curto”, explica.

A ligação a José Pinho e ao festival FOLIO acabou por ser determinante. “Já colaborávamos na programação do Fólio e, quando souberam que estávamos disponíveis para sair de Lisboa, convidaram-nos”, recorda.

Instalada numa antiga padaria, a Artes e Letras é hoje uma livraria antiquária, com oficina tipográfica de composição manual e espaço de bar, onde também se vendem produtos da região. “Sempre quisemos trabalhar com coisas regionais. Isso permite envolver diferentes agentes locais num projeto comum”, refere o livreiro.

Exemplo dessa lógica integrada é a iniciativa Tartes de Poesia, programada para o próximo Fólio. “Criei uma gramática de produtos locais e desafiei quatro chefs a criarem tartes com ingredientes da região, como abóbora da Lourinhã, cebola do Sobral, berbigão da Lagoa. Cada tarte será um poema”, adianta.

Apesar de reconhecer que o negócio do livro não é fácil, especialmente fora dos períodos de festival, Luís Gomes destaca o impacto indireto do projeto. “Nem tudo se mede em vendas. A dinâmica cultural que se criou, o envolvimento com escolas, os contactos com poetas e autores locais, isso tem um valor enorme”, aponta.

Residências que criam tempo e espaço para escrever

Outro pilar do ecossistema literário de Óbidos são as residências artísticas para escritores. Daniela Costa, autora natural de Vila Real e residente no Porto, participou numa dessas residências em 2018, na Casa Josefa d’Óbidos.

“Foi a minha primeira experiência numa residência literária. Candidatei-me por e-mail e acabei por ir no verão. O mais importante foi poder escrever com foco, sem distrações. Como dizia a Virgínia Woolf, ter um quarto só para si”, conta a escritora.

Durante a estadia, descobriu um ambiente cultural “muito mais rico do que esperava”. “Havia livrarias em sítios inesperados, concertos, ciclos de cinema. Estava a decorrer uma residência de um cineasta ao mesmo tempo. Era mesmo um ecossistema cultural.”

Essa experiência levou-a, mais tarde, a integrar o projeto europeu CELA – Connecting Emerging Literary Artists, do qual Óbidos era parceiro. “Fiz parte do trio português. Os textos que escrevíamos eram traduzidos para várias línguas, como o polaco, o checo ou o flamengo. Cheguei a ir aos Países Baixos numa outra residência ligada ao cinema”, refere.

Hoje, Daniela vive da escrita, mas não apenas da publicação de livros. Criou um projeto biografias por encomenda, em que transforma histórias de vida de pessoas anónimas em livros familiares. “Mesmo sem ser uma escritora tradicional, essas residências como a de Óbidos ajudaram-me a crescer enquanto autora e a descobrir novas formas de trabalhar”, afirma.

Hotéis que vivem da e com a literatura

A marca literária da vila está também presente na hotelaria. O caso mais notório é o do The Literary Man Hotel, considerado o maior hotel literário do mundo. Instalado num antigo convento de 1832, o espaço foi transformado em 2015 – ano em que Óbidos recebeu a distinção da UNESCO – e passou a integrar o projeto Vila Literária.

Hoje, o hotel alberga cerca de 90 mil livros e o objetivo é chegar aos 100 mil. “Recebemos doações de famílias que nos entregam bibliotecas inteiras. Para nós, isso tem um valor enorme”, afirma Marta Garcia, responsável pelo hotel. Os livros circulam livremente entre os quartos e as salas comuns.

Para além da função hoteleira, o The Literary Man organiza tertúlias, exposições, residências e encontros literários ao longo do ano. “O Fólio irradia para todo o calendário. Temos grupos que vêm fora do festival só para escrever ou participar em atividades culturais”, refere Luís Plácido, diretor da unidade hoteleira.

A ligação ao território também se mantém. Está a ser preparada uma exposição sobre a Lagoa de Óbidos e há planos para noites temáticas com fado, jazz e piano. “Temos clientes que vêm cá por causa da programação cultural. Até a nossa rececionista já publicou contos. A literatura aqui não é decoração, é o centro de tudo”, sublinha Marta Garcia.

Mesmo unidades que não nasceram com vocação literária, como o Josefa D’Óbidos Hotel, têm vindo a integrar-se no ecossistema criativo da vila. Em 2020, o hotel inaugurou o seu recanto de Book Crossing, uma pequena biblioteca de circulação livre.

“Foi quase uma premonição. Inaugurámos o espaço em fevereiro e logo a seguir veio a pandemia. Já em março havia um livro deixado cá que apareceu no aeroporto de Barcelona”, recorda o gerente Carlos Martinho.

A adesão foi imediata. “Já tivemos hóspedes que, depois de levarem um livro, nos enviaram outros pelo correio. Hoje temos cerca de 300 livros em várias línguas.” O hotel organiza ainda tertúlias e jantares literários durante o Fólio. “Já recebemos autores como a Ana Maria Magalhães, a Isabel Alçada, o Mia Couto… e muitos outros. No ano passado tivemos uma exposição de livros em madeira e uma conversa sobre o impacto do turismo massificado.”.

Durante o Fólio, o hotel serve ainda de ponto de apoio logístico. “Só nessa semana servimos mais de 3.000 refeições. É um movimento enorme de autores, editores e leitores que passam por cá”, refere.
Carlos Martinho realça que o selo de Cidade Criativa da UNESCO trouxe valor acrescentado à vila e quebrou a sazonalidade. “Por exemplo o Folio acontece numa altura de transição do verão para o outono, em que as unidades hoteleiras e a restauração têm uma quebra brutal, e vem elevar a procura praticamente ao mesmo nível do verão, o que é excelente”.

“Há vilas medievais e do chocolate por todo o lado. Mas vilas literárias como Óbidos são raras. O estatuto de Cidade Criativa colocou-nos no mapa. E nós fazemos questão de contribuir para manter essa identidade viva”, remata o hoteleiro.

Com eventos como o FOLIO – Festival Literário Internacional e o Latitudes – Literatura e Viajantes, e com uma rede viva de livrarias, escolas, bibliotecas, hotéis e criadores, Óbidos é hoje uma vila onde se lê, se escreve, se conversa e se transforma através das palavras.

Mais do que um destino turístico, é um território onde a cultura se faz prática quotidiana. E onde o futuro se continua a escrever, página a página.

Joel Ribeiro


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