Assinar

Antologia do Improviso: Suor e Ternura Diluída em Colónia Bien-Être

No regresso da excursão a Espanha trouxeste-me um chorão de verdade, maior do que os meus sonhos em bicos dos pés, e ansiedade desnorteada.

No regresso da excursão a Espanha trouxeste-me um chorão de verdade, maior do que os meus sonhos em bicos dos pés, e ansiedade desnorteada. Naquele instante, os teus olhos brilharam mais do que os meus. Sem caber em mim, peguei no boneco e invadi ‘O Reservado’ do café onde a madrinha respirava de alívio sem ‘moi même’ a tiracolo, e fingia fazer coisas proibidas; aproveitando o pretexto para provocar a tua aversão às ‘escotecas’, ‘bibliotecas’ e qualquer outra palavra parecida com discoteca. Para ti, as ‘ecas’ eram farinha do mesmo saco, uma pouca vergonha e um verdadeiro antro de perdição repleto de corpos nus enrolados, drogas e tudo de mau que a imaginação pudesse alcançar.

As minhas lembranças vestem-se de longas noites de verão, terra, honestidade, suor e ternura diluída em colónia ‘Bien-Être’. Sempre me defendeste da minha mãe, mesmo que ela tivesse toda a razão para mandar vir. Para não me despacharem com o pão do dia anterior, chegavas da fazenda e ias a pé buscar-me uma ‘neta’ cozida em forno a lenha. Ralhavas comigo quando ficava a ler ou ver televisão à noite: «Vai dormir, cachopa! Quero ver a conta da luz que aí vem»; mas continuavas a comprar lâmpadas potentes para me iluminares a impertinência. Ias ao talho da Júlia Maria avisar que querias costeletas de borrego do bom: «Larga-te de falinhas mansas, que a minha Sandra vem cá jantar com o Elfo» (Alf, ou outro nome qualquer parecido com Hélio – raramente conseguias acertar).

Deste-me a carta de condução e ensinaste-me a escolher a direção certa, ainda que isso implique caminhar em desvios escuros. Esta primeira crónica do ano de 2020 coincide com o final da tua estrada, demasiado curta para quem fica e teve o privilégio de te ter. Parece que ainda te oiço a falar carinhosamente com a avó sobre a menina, que era eu já mulher feita… Analfabeto apenas de letras, sempre soubeste amar-me e ler-me como ninguém.

Pela última vez, virei-te a boina ao contrário. Deixa-a ficar assim, para nunca te esqueceres de nós.

Ilustração: Jorge Morgado

(Artigo publicado na edição de 9 de janeiro de 2020 do REGIÃO DE LEIRIA)