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Crónicas do quinto império: O bom português – I

As leis em Portugal são de redação confusa, dúbias ou omissas, para que permitam sustentar toda uma complexa “máquina” judicial.

Joaquim Ruivo, professor jruivo2@sapo.pt

Um cartaz lançado pelo Estado Novo nos anos 30 dizia preto no branco: “Beber vinho é dar o pão a 1 milhão de portugueses”. Se, com a devida distância, pudéssemos adaptar esse cartaz à atualidade, diríamos: “Burocratizar é dar de comer a milhares de portugueses”.

Não há como os portugueses para criar papelada. Para fundamentar, teorizar, basear, reconhecer, identificar, burocratizar….

Não me queixo obviamente de quem me atende ao balcão. Mas de todos os tecnocratas anónimos que alimentam a complexificação da máquina e a tornam redundante em papéis e informações, interpretações, verificações, creditações, certificações, validações, exames e inspeções…

Até tarde fui ingénuo ao pensar que tal gosto – e prazer – se devia a uma genuína vontade de fazer bem, de se ser rigoroso. Nada mais errado. O gosto pela papelada só se justifica por duas ordens de razões: por simples paranoia ou porque a burocracia, tão caracteristicamente ronceira e ineficaz, permite sustentar “à grande e à francesa” muita boa gente.

Dou um exemplo ao acaso: o dossiê português de enquadramento das candidaturas portuguesas a apoio comunitário tem cerca de 400 páginas. Ora, o mesmo documento na Andaluzia (região equivalente ao nosso país no contexto de apoio comunitário) limitou-se a 80 páginas.

O nosso documento está excecionalmente bem estruturado, completo e explícito? Na verdade, o que essas 400 páginas condicionam, pela sua complexidade, é que só possam ser interpretadas e descodificadas por especialistas e técnicos que se fazem pagar – e bem – pela preparação das candidaturas. Não admira portanto que nalgumas medidas do quadro comunitário uma boa fatia do apoio tenha sido dada a empresas de consultadoria que só se criaram, por sua vez, para apoiar empresas, organismos e instituições a concorrer a apoios comunitários…

Mas este afã de complicar e obscurecer o que podia ser simples, não é novo e é comum a todas as áreas. São alguns juristas corajosos que o dizem: as leis em Portugal são deliberadamente de redação confusa, dúbias ou omissas, para que permitam sustentar toda uma complexa “máquina” judicial e favorecer, em última análise, quem mais pode – e tem – para pagar a bons advogados.

Em Portugal sempre houve e continua a haver uma grande distância entre o que se escreve e o que se faz. Paradoxalmente entre as boas intenções e a sua duvidosa execução vai a distância de um sopro…

(texto publicado na edição em papel de 27 de janeiro de 2012)