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Bruno Monteiro

Professor

O paradoxo da tolerância

A família não deve procurar um clone de si mesma, deve dar espaço para o indivíduo aprender, evoluir e conhecer outras perspetivas que lhe permitam desenvolver uma personalidade única, livre, com capacidade de fazer as escolhas que definem cada um. Reparem na biologia da reprodução.

Para alguns pensadores, cada indivíduo é definido pelo resultado global das suas ações e das tomadas de decisão, que dependem dos potenciais carateres individuais gerados pela interação dos genes herdados dos seus pais com o meio ambiente envolvente. No fundo, nós não nascemos verdadeiramente humanos, nós tornamo-nos humanos ao longo de um processo de educação e controlo gerados pela escola, família e sociedade. Num mundo perfeito, cada família deveria ter o papel de determinar, com a maior assertividade possível, a forma como se desenvolveria cada um dos seus. Contudo, não vivemos num mundo perfeito e as famílias não apresentam todas o mesmo potencial financeiro, cultural, etc… Cabe ao Estado tentar suprir este problema, garantindo aos jovens cidadãos a máxima igualdade. Cada jovem deveria ter, tanto quanto possível, acesso a informação e estímulos relevantes ao longo do percurso escolar, que lhe permitissem construir uma estrutura moral e intelectual adequada a uma integração facilitada e positiva no mundo que o rodeia.

Os jovens são esponjas do meio envolvente, sendo tal evidente nas idades mais precoces onde o impacto na edificação das personalidades, futuras ambições e comportamentos é muito significativo. Cabe aos pais confiarem que os temas escolares sejam transmitidos de forma adequada em cada idade. Não devem existir temas proibidos. Os temas são adequados a cada momento com uma abordagem correta, que é garantida pela interpretação e transmissão do docente. A abordagem do professor poderá não ser perfeita, contudo tem de existir confiança: médicos, bombeiros e até, vá-se lá saber… banqueiros e políticos erram, os professores também. Existem mecanismos e abertura por parte das escolas para resolver ou minorar qualquer situação.

Deveríamos estar atentos à intolerância sobre os temas mais complexos ou tabu. Certos pais pretendem que os filhos sejam repetições de si mesmos, havendo uma cartilha a cumprir para a religião, clube, orientação política ou sexual. A família não deve procurar um clone de si mesma, deve dar espaço para o indivíduo aprender, evoluir e conhecer outras perspetivas que lhe permitam desenvolver uma personalidade única, livre, com capacidade de fazer as escolhas que definem cada um. Reparem na biologia da reprodução: esta, quando assexuada, gera clones com pouca capacidade evolutiva e adaptativa. Por outro lado, a reprodução sexuada gera diversidade e uma preparação maior para qualquer alteração do meio. A capacidade de evoluir, de aprender é fundamental para garantir a plasticidade num mundo cada vez mais desafiante e multicultural.

A polémica à volta da formação cívica fez-me recordar o paradoxo da tolerância de Karl Popper. Este afirma que tolerância ilimitada irá no final destruir a própria tolerância. Uma sociedade que se quer plural, informada e livre deve facultar ao cidadão o conhecimento necessário para ser respeitador e tolerante. Já eliminámos demasiadas disciplinas ditas “inúteis” quando todas as formas de conhecimento têm valor: arte, ciência, história da religião deveriam enriquecer os currículos escolares independentemente das vontade dos pais, de modo a que os filhos ganhem a capacidade e a lucidez de serem intolerantes com a intolerância.

(Artigo publicado na edição de 24 de setembro de 2020 do REGIÃO DE LEIRIA)