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Música

Uma Cena ao Centro. A música de Leiria dos anos 90 dava um filme e já tem um livro

Pedro Miguel, autor de “Uma Cena ao Centro”, onde os seus This Is a Morphine Trip foram fotografados há 20 anos
Foto: Joaquim Dâmaso

Manuel Leiria
Jornalista
manuel.leiria@regiaodeleiria.pt

Assistiu a tudo quase sempre na última fila, tímido e muitas vezes de envergonhados olhos no chão. Mas era entusiasta e militante. Também foi protagonista, quando saltou para o palco nos dois concertos da curta carreira dos This Is a Morphine Trip, para tocar teclas e… aspirador. Duas décadas depois, Pedro Miguel, 43 anos, olhou para trás e escreveu “Uma Cena ao Centro”, uma história possível da música moderna da região de Leiria na última década do século XX, que reflete a visão de quem “nem sequer ia para o mosh, mas era muito observador”.

Entre grandes e pequenas, perenes e episódicas, no livro estão quase 300 bandas de Leiria mas também da Marinha Grande, Caldas da Rainha, Alcobaça, Peniche, Nazaré e Pombal. Ali faz-se o “mapeamento” de quem era quem, dos sítios onde tudo acontecia, das lojas de discos às discotecas da moda, sem esquecer clubes de sítios musicalmente hoje um tanto ou quanto remotos como Juncal, Moinhos de Carvide, Burinhosa ou Caranguejeira.

“Havia mais sítios para tocar do que hoje, mais na periferia. Hoje também é mais fácil falar com o vereador, conseguir um teatro, mas na altura isso era uma coisa… Perante a falta de soluções, a malta virava-se para as coletividades e depois a coisa, tipo bola de neve, começou a crescer”, recorda.

Fala-se, claro, de quem fazia acontecer, como Carlos Matos e Célia Lopes, da atual associação Fade In, o pessoal que dava vida ao bar Ben, em Alcobaça, ou do papel de João Paulo Feliciano na “cena” das Caldas da Rainha.

A vontade antiga de contar esta história cresceu quando Pedro Miguel lhe juntou a investigação para o mestrado sobre “A cultura na imprensa regional”, a partir do “Jornal de Leiria”, no arquivo do qual investiu horas a analisar as páginas alimentadas por Carlos Matos.

“O Carlos Matos é que devia ter feito o livro e não eu”, dispara. “Ele sabe de cor coisas que mais ninguém sabe. É uma enciclopédia ambulante”, diz Pedro Miguel sobre o presidente da Fade In, que entre outros projetos fundou e trabalhou na loja Alquimia, geriu a discoteca StormZone e atualmente programa a Stereogun. “Ele viveu tudo por dentro. As bandas iam ter com ele e com a Célia mostrar as maquetes. Foi ele que insistiu com o David Fonseca para gravar alguma coisa com o que lhe foi mostrar”. E daí aconteceram os Silence 4. 

Carlos Matos, que começou a escrever sobre música no “Jornal de Leiria” em 1994, mantém, mais de três décadas depois, o entusiamo que então exibia nas páginas do suplemento de cultura do jornal. “Os olhos dele ainda brilham quando descobre uma banda. É como o Hugo Ferreira, da Omnichord. Têm um entusiasmo de putos, como no início”.

O impulso decisivo para “Uma Cena ao Centro” foi, contudo, o momento atual da música da região. “Parece que estamos novamente a viver uma ‘cena’ leiriense. Está tudo a acontecer outra vez”, diz o jornalista freelance, reconhecendo talento em Leiria, mas não só. “Nas Caldas da Rainha temos os Cave Story que para mim são das melhores bandas do momento”. 

Pedro Miguel quis, assim, escrever “para estas novas gerações perceberem que houve uma primeira fase de talento – e foi gira”.

Mas o que torna, afinal, os anos 90 especiais? Há diversos motivos, mas quanto mais não seja pelos Silence 4 e pelos The Gift, que foram as duas primeiras grandes exceções no panorama da música nacional que não eram nem de Lisboa nem do Porto”.

Num tempo em que editar era um acontecimento, aquelas bandas de Leiria e de Alcobaça “conseguiram furar e chegaram onde chegaram porque tinham qualidade”.

Pedro fala com carinho de outro caso: “Ainda hoje gosto muito dos Phase e não é só por serem meus amigos. Achava aquilo bom”. No livro conta, ao detalhe, a aventura da banda de Leiria já extinta, que chegou a gravar um disco em Londres.

O gosto e as opiniões do autor estão muito presentes, num registo quase diarístico. Mas também há preocupação documental. “Falo em muitas bandas de punk e metal que já não me diziam tanto, mas havia um movimento forte”.

Entre 1990 e 1999 houve uma “‘tempestade perfeita’, também com muita experimentação”, que possibilitou uma fase de grande produção musical:

“Na altura havia muitos concursos de música moderna. Criavam-se bandas para participar nesses concursos. Mas há mais fatores: o preço dos instrumentos musicais desceu; houve uma maior abertura à União Europeia; a auto-estrada Lisboa-Porto ficou pronta e aproximou o país; surge a [rádio] Xfm, que apesar de ser só de Lisboa e do Porto, chegava cá pelo pessoal que estudava fora e que gravava umas cassetes”.

Com a chegada do novo milénio, houve um corte. “A primeira década foi um bocado desinteressante, apesar de ter surgido aí um dos melhores projetos de sempre [de Leiria], os The Allstar Project“.

Tal como os Silence 4, muitas bandas acabaram, com os músicos a darem o salto para a vida adulta. “Começaram a casar, foram para a universidade e já não voltaram, dispersaram-se. Os anos 2000 foram a ressaca da nossa juventude”. Desse tempo, nota Pedro Miguel, “quase só sobram o David Fonseca e os The Gift e o pessoal dos Phase, que está espalhado: o Pisco está no [The Legendary] Tigerman e Sean Riley [& The Slowriders], o Nuno [Filipe] também está nos Sean Riley e é roadie de uma série de bandas…”.

Outra interessante excepção são os Alien Squad, de Leiria, banda de trash punk fundada no final da década de 80 que ainda mexe e bem. “Têm uma coisa gira porque juntam duas gerações: têm um puto novo a cantar, que tem quase idade para ser filho dos outros, que continuam: o Xano, o Pedrito, o Hugo…”.

As mudanças na indústria também constribuíram para essa viragem, que nuns casos foi positiva e noutros negativa. “Em 89 acabaram os singles. Ou comprava-se o LP ou nada e isso ‘lixou’ a indústria toda. Levou à pirataria”, defende a autor de “Uma Cena ao Centro”. Começaram os processos legais contra quem partilhava música ilegalmente, luta longa que redundou no cenário do streaming atual. Mas, por outro lado, a inovação tecnológica permitiu a partilha e acesso, da música e tudo o mais, como nunca antes. 

Um bom exemplo é Surma, um dos “pontas-de-lança” da tal nova cena que Pedro Miguel identifica estar a acontecer:

“O que se faz hoje é incomparavelmente melhor. Há uns tempos estive com a Surma – que nasceu em 94 – e ela meteu na cabeça que queria aprender violino. Foi para os tutoriais do Youtube! Isto antigamente era impossível, não havia nada disso”. Além disso a qualidade do que se grava está noutra dimensão: “A tecnologia explodiu e já é possível gravar com bom som em casa”.

Ao longo daquelas páginas revela-se ainda o pensamento crítico de Pedro Miguel: “O livro é meu, faço dele o que quiser. Há uma veia contestatária que sempre tive, assumidamente. É relembrar esse tempos que, parece hoje em dia, não desapareceram totalmente…”.

Lançado em setembro, este “Uma Cena ao Centro” foi escrito “na óptica do utilizador” e pode bem ser o primeiro de outros volumes. “Quero tirar um doutoramento e depois logo se vê. Vou virar-me para a sociologia à volta da música. Pode haver continuidade, porque ficaram muitas pontas soltas”.

O livro “Uma Cena ao Centro – Música moderna portuguesa 1990-1999” está à venda online na Rastilho – que também figura nesta história da música de Leiria – em www.rastilho.com 

Houve uma ‘tempestade perfeita’, e muita experimentação, que possibilitou essa abertura e que explica esta fase de grande produção aqui, nos anos 90. (…) Agora estamos a viver uma segunda fase de talento, mas o livro é engraçado para estas novas gerações perceberem que houve uma primeira fase – e foi gira


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