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Leiria

Bairro Sá Carneiro. Aqui “D’El Rei” já começou a fazer a diferença

“Todos Pró Bairro” pôs os moradores do Bairro Sá Carneiro a pensar e a fazer mudança para comunidade. É o arranque de “D’El Rei”, novo projeto de intervenção social da associação InPulsar, que leva para o terreno o primeiro Contrato Local de Desenvolvimento Social no concelho de Leiria.

Moradores juntam esforços para mudar a face – e a fama – do Bairro Sá Carneiro Fotografia: Idalécio Francisco

É início de tarde num sábado que sabe a fim de verão mas há entusiasmo no Bairro Sá Carneiro. Junto à sede da associação de moradores, um grupo armado de rolos e tintas dá outra face às paredes do Posto de Transformação (PT), há anos usado como mural de recados de pouco gosto. Ao lado, serrotes, berbequins, aparafusadoras fazem-se ouvir: pela ação dos mais novos e gente experiente, sob orientação dos elementos do coletivo “O til” nascem bancos, sofás, floreiras e até a uma pequena bancada de madeira para o campo desportivo do histórico bairro dos Marrazes. São ideias sugeridas pelos moradores a ganhar vida, após a recolha feita para “Todos Pró Bairro”, iniciativa de “D’El Rei”, projeto da associação InPulsar, que durante três anos vai tomar o pulso ao espírito comunitário de três freguesias do concelho de Leiria.

Para o arranque, os moradores do Bairro Sá Carneiro foram convocados a participar voluntariamente. Mas também houve quem andasse porta-a-porta, a recolher contributos junto de quem não pode, não soube – ou, até, não queria opinar. 

Assim nasceu um grande mapa com ideias, desenhado em papel e recheado de coloridos post-its manuscritos. Neles estão desejos, ideias ou desabafos para fazer daquele um sítio melhor. Há quem peça a instalação de bebedouros, churrascos, luz no campo de jogos e a organização de torneios desportivos. Ou, simplesmente mais limpeza, sombras e silêncio. No centro do “Mapa de Ideias Pró Bairro”, um autocolante-chave resume tudo: “Cuidar do Bairro p’[orque] isto é nosso”.

O objetivo do exercício foi expressar “o espírito de comunidade num bairro que tem as características que tem e algum estigma associado”, explica ao REGIÃO DE LEIRIA a coordenadora técnica de “D’El Rei”. O primeiro desafio mobilizou moradores para “criar ou cocriar dentro do espaço, com o coletivo ‘O til’”, diz Irene Tereso.

Em duas semanas de “trabalho-relâmpago”, recolheram-se contributos “de todas as formas e feitios” para apurar “o mais possível aquilo que são as diferenças de opinião” num espaço marcadamente “multicultural, com idades muito dispersas”. “Logo à partida isto mais difícil gerir o espírito comunitário”, frisa. 

Cruzando a ação social com a intervenção artística, pintou-se o PT e equipou-se com mobiliário a esplanada da sede da Associação dos Moradores do Bairro Dr. Sá Carneiro e o campo de jogos. 

“A nossa expectativa é mostrar que nos importamos com eles, com quem cá mora, e que queremos fazer mais coisas”, conta Irene. Porque intervir não é só “ouvir as dificuldades e as coisas más” mas, também, falar “das coisas muito boas que há aqui”, que podem ajudar a “dar protagonismo ao Bairro” para que “as pessoas comecem a olhar de forma diferente”, frisa a coordenadora, que também meteu mãos à obra: “Estamos a viver isto intensamente, aqui com eles. É tudo novo, é novo para o Bairro, é novo para nós, é uma forma diferente de fazer intervenção social”. 

E, contudo, nem sempre foi assim. Durante muito tempo, o Bairro Sá Carneiro era um “bicho papão”: “Havia claramente um estigma. Diziam-nos: ‘Ah, não vão para o Bairro Sá Carneiro! Não vão!’. Ai, é que vamos mesmo!”, recorda. A surpresa foi grande. “Sinto-me completamente à vontade. Agora é chegar e ouvir ‘Oh Irene! Oh Irene!’, somos sempre muito bem recebidos, aqui é fácil estabelecer ligação”, porque “as pessoas estão de braços abertos e são pouco desconfiadas”. A partir daqui é possível levar ainda mais longe a intervenção social, porque existe “uma base, um vínculo de proximidade”.

“Temos gajos de toda a qualidade”

Entusiasmado com toda a animação, estava José Jesus. À beira de completar 70 anos, é o “artista” do Bairro: constrói motas e outras engenhocas numa pequena oficina de rua. Em “Todos Pró Bairro” aplicou conhecimentos e a vontade para ajudar. “Decidi participar na qualidade de velho”, diz-nos, divertido, quando o interrompemos na medição de mais uma palete. “Este projeto é fenomenal. Quero que isto vá avante e amanhã possa ver o resultado do meu trabalho”.

José Jesus foi um dos mais ativos moradores em “Todos Pró Bairro”: “Decidi participar na qualidade de velho” Fotografia: Idalécio Francisco

No Bairro falta “muita coisa, há muitas necessidades”. José Jesus sabe do que fala: ele foi o terceiro – “já nem me lembro o ano” – a chegar para habitar aqueles prédios que acolheram expatriados dos antigos territórios ultramarinos. Quase cinco décadas depois, há ali “muita malta nova”: “Temos gajos de toda a qualidade: desde o que fuma a sua ‘passazinha’, o gajo que é normal, também temos meninos de ‘sangue azul’. Tem de tudo aqui”.

José aceitou o desafio de “Todos Pró Bairro” para “não discriminar uns e outros”. “Vamos fazer coisas para todos! Para que ninguém nos aponte o dedo e dizer que só fazemos coisas para os meninos bonitos”. Essa é a principal razão para ajudar a mudar mas, sem rodeios, lamenta que parte significativa da juventude não queira saber. “Os cabrões não ajudam, mas não faz mal, eu vou fazendo”. Por um lado, os bancos e mesas que está a montar vão contribuir para que haja menos ruído junto aos apartamentos. “Quero que não vão lá incomodar os velhos, com aquela música para o ‘boi adormecer’. Há que respeitar”. Por outro, José Jesus alimenta a esperança de que, com o exemplo dele e dos outros voluntários, “estas pequenas coisas que estamos a fazer sirvam de modelo” para quem hoje ignora ou fica a ver ao longe. “Amanhã espero que possam fazer eles mesmos, coisas com outro calibre e qualidade”. 

O envolvimento da comunidade é uma preocupação bem presente na iniciativa pensada para o Bairro Sá Carneiro. Nesta ação participaram cerca de 60 pessoas de entre os perto de 600 moradores. “Dez por cento são só dez por cento mas… já são 10%”, nota Irene Tereso. Para chegar mais longe, Luís Gomes, mais conhecido por “Bocas”, diz que é importante envolver “certas pessoas” para “outras alinharem nas atividades”. A par disso, há ainda algum descrédito: “Ao longo dos anos dizia-se que se ia fazer isto, assado e cozido e depois as coisas não aconteciam”. 

Longe da carpintaria mas empenhado na pintura, “Bocas” pára o que está a fazer para falar connosco. Está a cobrir de tinta o PT, instalado “no coração do Bairro”, num sítio onde “passa muita gente, tanto daqui como de fora” e por isso é preciso dar-lhe outro aspeto.

Luís integra a Associação dos Moradores do Bairro Dr. Sá Carneiro, que está a fazer quatro anos. “Já se vê algumas coisas. Levou tempo? Foi uma luta constante? Foi, mas se calhar algumas pessoas que não acreditavam já estiverem aqui hoje a ajudar”. 

A grande conquista é a instalação da sede, onde funciona um bar e acontecem atividades, atualmente limitadas pela pandemia. “Faltava algo nosso dentro do bairro. Mais vale tarde do que nunca”. 

Por isso também está esperançado na nova geração que ali cresce. Tal como José Jesus, “Bocas” sabe como é a juventude. “Cumprir horários e compromissos custa e leva tempo. Também já fui assim. Mas hoje tento mostrar como sou diferente. Aos poucos eles vão lá”. “Eles” são “60 ou 70 miúdos até aos 22 anos” que vivem no Sá Carneiro e que, confia, “têm capacidade para pegar nisto”. 

“Todos Pró Bairro” é uma grande ajuda nesse sentido. “É maravilhoso”, considera, porque mostra “de dentro para fora” outra imagem. “As pessoas pensam que é só droga, gente má. Este bairro é como os outros”. 

Construído para receber quem veio para Portugal após a descolonização, o Bairro Sá Carneiro acumulou má fama, reconhece Luís. “Isto é um bairro de retornados e a primeira imagem que ficou foi negativa”. E descontrolou-se. “Diziam que era o bairro dos pretos ou dos macacos – e muitas vezes ainda somos assim conhecidos”, lamenta. Mas, “com muito trabalho”, há mudanças a acontecer. “Muita gente de fora sabia que isto não era só pessoas más, rebeldes, ladrões e drogas. Há sempre aqui gente boa”. Para “Bocas”, o grande orgulho é a Festa do SaKa. Este ano foi cancelada devido à pandemia mas, “quando se faz a festa de agosto, 70% das pessoas que vêm são de fora”. Sinal de que o Bairro começa a ser visto com outros olhos. 

Luís “Bocas” Gomes: “Muita gente de fora sabia que isto não era só pessoas más, rebeldes, ladrões e drogas” Fotografia: Idalécio Francisco

José Jesus também acredita que é possível melhorar, não só a fama como a qualidade de vida. Mas, avisa, há uma transição decisiva a acontecer. “Estas caixas brancas”, aponta para os prédios, “foram feitas para os retornados. Os retornados e os descendentes deles continuam aí. Mas agora querem ‘eliminar’ os retornados”, denuncia. “Está cada vez mais um bairro misto, o estatuto dos retornados está a acabar. Querem ‘eliminar’ quem paga 30, 40 ou 80 euros para meterem lá quem paga 250. Deixem as casas para quem de direito, respeitem as pessoas”, apela, enquanto fala em zunzuns de “putos que estão a ameaçar riscar as paredes se as rendas subirem. Não podemos deixar isso acontecer”.

Derreter o receio

“Todos Pró Bairro” é apenas o início dos três anos de “D’El Rei”. A experiência no Sá Carneiro foi tão boa que a coordenadora assume a intenção de a replicar noutras zonas. O contacto com os moradores, o mapa e a aplicação prática revelaram-se uma ferramenta poderosa. “O que gostaríamos era usar isto para fazermos outras atividades, não só com o coletivo ‘O til’ e nem só de caráter artístico”, intervindo e estudando os efeitos. Irene Tereso assume expectativas altas: “Queremos ver como é que vão olhar para isto que vai ser produzido”, mesmo sabendo que o que foi construído pode desagradar a alguns ou até ser vandalizado. “O que esperamos é que as pessoas comecem a olhar as coisas de maneira diferente”, fruto da “consciência coletiva de que são comunidade e são bairro e que é possível fazer diferente”. Mais do que pintar paredes ou inventar sofás, “o mais importante é a reflexão”.

Nem todas as ideias e pedidos afixados no “Mapa de Ideias Pró Bairro” vão conhecer a luz do dia. Em todo o caso, as sugestões dos post-its “vão chegar às pessoas que verdadeiramente podem fazer mudança”: a Junta de Freguesia e Câmara Municipal de Leiria. “Vamos agarrar nisto quase como uma bandeira de reivindicação”, contando as “coisas fabulosas, muito ricas” que ali existem. Irene Tereso espera que, dessa forma, seja possível “mobilizar as pessoas” e “derreter esse receio” que subsiste.

Entretanto, este sábado estende-se e o outono que chega brinda todos com um aguaceiro. Há jogo da bola a começar na televisão e a sede da associação abriga tanto quem quer ver o Benfica como quem foge da chuva. Como sempre no Bairro Sá Carneiro, não há problema. A mudança continua amanhã.

O projeto “D’El Rei”

“D’El Rei” é um projeto de intervenção social constituído por três eixos que teve o pontapé de saída com “Todos Pró Bairro”. Ao longo de três anos, estão previstas dez ações de desenvolvimento e mobilização comunitária. Trata-se de um Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS) de 4ª Geração atribuído a Leiria no âmbito de intervenção em calamidade, relacionada com os incêndios de 2017. É a primeira vez que Leiria tem um CLDS. “O projeto foi feito em 2019 quando não havia sequer ideia de que íamos ter uma nova calamidade”, nota Irene Tereso. Cinco dias depois de começar, em março, foi imposta a quarentena devido à covid-19. “Felizmente tínhamos as atividades definidas de uma maneira que nos está a permitir continuar a trabalhar”.  

Este projeto da InPulsar é desenvolvido a convite da Câmara Municipal de Leiria e tem financiamento do POISE (Programa Operacional Inclusão Social e Emprego). Além da União de Freguesias de Marrazes e Barosa, “D’El Rei” vai chegar também à Maceira (arrancou no início de outubro) e União de Freguesia de Parceiros e Azoia. As intervenções serão adaptadas a cada território, porque nem todas as comunidades têm a dimensão do Bairro Sá Carneiro: algumas são ruas “com seis ou oito casas”. 

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