“A multidão reúne-se para o evento habitual. A figura é arrastada e a massa, em êxtase, vocifera injúrias, arremessa objetos e, em catarse, expurga a sua ira. O carrasco cumpre a sua função, o corpo incendeia-se, afoga-se, enforca-se, envenena-se e a plateia está em ovação. A última mulher a ser sentenciada por bruxaria na Europa morreu em 1782, na Suíça”.
A sinopse de “Nós somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar” não deixa dúvidas: esta é uma performance que evoca, de forma poderosa, as vítimas de um dos períodos mais negros da humanidade, “o maior femicídio da História Ocidental”.
Quarenta a cinquenta mil mulheres foram mortas durante o período da caça às bruxas na Europa. “As mais fustigadas eram, por um lado, idosas ou viúvas que, sem recursos, recorriam à mendicidade, e, por outro, mulheres que tinham conhecimentos audazes para a condição feminina, como ervas contracetivas e abortivas, bem como camponesas que lutavam pelo direito à sua terra”, explica-se no texto de apresentação.
Eram mulheres que, acrescenta-se, “diferiam do padrão de feminilidade vigente, eram uma ameaça ao poder e tinham de ser aniquiladas”.
A companhia Bestiário lembra-as em “Nós somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar”, que chega a Leiria no dia 12 de setembro.
Na Igreja de São Pedro, mostra-se a décima criação da Bestiário, estreada em outubro de 2024 no festival Temps d’Images, em Lisboa. “Muitas eram curandeiras, parteiras, camponesas — mulheres que sabiam demasiado ou eram demasiado livres. A história apagou-as, mas o teatro recupera a memória”, vinca a companhia.
Recorrendo ao arquivo vivo dos vários corpos femininos e à implicação dos mesmos na sociedade atual, questiona-se: O que é ser bruxa? O que é ser mulher? “Ao mesmo tempo refletiremos sobre o significado que o conceito bruxa ganhou a partir das lutas feministas dos anos sessenta e do seu reflorescimento atual”. Partindo dos registos históricos, a Bestiário aborda a identidade das vítimas da caça às bruxas em Portugal para, através do seu reconhecimento, “reivindicar o seu lugar na História”.
“Nós somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar” é uma ideia com direção artística e dramaturgia de Teresa V. Vaz, a partir dos textos “O Apocalipse”, de São João, “Malleus Maleficarum” de Heinrich Kramer e James Sprenger, e “Feiticeiros, profetas e visionários. Textos antigos portugueses”, seleção de Yvonne Cunha Rêgo A criação e interpretação é de António Bollaño, Francisca Neves, Joana Petiz e Lia Vohlgemuth.
O espetáculo, que tem entrada livre e é para maiores de 14 anos, inclui uma cena final com participação da comunidade. A Bestiário abriu inscrições para quem quiser marcar integrar a performance. “Não é preciso experiência – apenas vontade e presença!”. Procuram-se 35 pessoas, entre os 18 e 65 anos, que devem participar num ensaio na tarde do dia 11 de setembro e no espetáculo, na noite de 12 de setembro (21h30). Mais informações e inscrições em https://forms.gle/6rDBsynSp4juhLyRA.