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O meu diário: Desempregada

Hoje não podia deixar de falar nela. Gostava de trabalhar e já trabalhava naquela casa há mais de 20 anos.

Helena-vasconcelos
Helena Vasconcelos, médica hml.vasconcelos@gmail.com

Hoje não podia deixar de falar nela. Gostava de trabalhar e já trabalhava naquela casa há mais de 20 anos. Mas aquilo fechou, começou a falhar o negócio, e teve de aceitar a indemnização antes que viesse sem nada. E agora não valho nada doutora. Acordo e os meus dias são todos iguais. Estou velha demais para trabalhar e nova demais para ficar em casa sem projetos. Não posso ir ao cabeleireiro porque não tenho dinheiro e porque sinto que não mereço, que não tenho esse direito. Ninguém me respeita. Sou só mais uma desempregada. Dantes era escriturária agora sou desempregada. Profissão: desempregada. Sabe lá o que isto é. Sei que não sei. Por muito que nos perspetivemos nas situações, só quando o nosso coração aperta cá no peito é que sabemos. E eu tenho emprego e vou ao cabeleireiro quando dá tempo. Bolas e eu sou médica e tu escriturária, e a minha avó sempre dizia que todas as profissões são igualmente dignas se exercidas com honestidade. E eu quando compro uma roupa que me parece consumismo penso e desculpo-me do suave remorso com a autodefesa “também trabalhas tanto”, como se tudo o que gasto fosse um prémio pelo esforço que faço ao trabalhar.

Esta mulher não está agarrada ao subsídio de desemprego. Queria chegar de manhã pousar a mala e comentar com os colegas de trabalho o tempo, o esforço, a telenovela e a vida. Queria ter um patrão com bons ou maus modos, que quase tudo se desculpa a um patrão. Queria ter a cabeça levantada perante a vizinhança, que agora nem os quer ver com medo que saibam, como se de lepra se tratasse. Tem vergonha do que não devia mas já não levanta a cabeça. Queria comprar umas calças de marca ao filho sem o marido saber, que o garoto é um esquisito e antes quer não ter nenhumas. Costumava comprar-lhe um par no inverno. Este ano não posso mas ele também não reclama.

Eu sou médica e tu escriturária. Eu sou médica e tu desempregada.

(texto publicado na edição de 21 de novembro de 2013)