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O meu diário: Inveja

De inveja percebe a minha tia Gina e diz que atrasa a vida, isto é, quando somos alvo de inveja não temos sucesso.

Helena Vasconcelos, médica hml.vasconcelos@gmail.com

De inveja percebe a minha tia Gina e diz que atrasa a vida, isto é, quando somos alvo de inveja não temos sucesso.

Por isso a minha pobre tia que já conta com viçosos 80 anos e sempre foi solteira, sem namorado conhecido, recomenda que não falemos da nossa vida financeira (se saudável) ou mesmo amorosa, para não suscitar inveja nos outros e desta forma ficarmos atrasadas de todo. “Nunca digas quanto ganhas” recomenda quando a vou buscar para irmos à loja dos linhos a comprar matéria-prima para ela bordar para o meu enxoval sempre inacabado. A minha tia ainda tem esta ideia romanesca que os médicos são seres que nadam em dinheiro, desconhecendo ela um invejoso que se chama IRS, para além de tantos outros invejosos da mesma estirpe que atrasam a vida da gente.

Mas quando chegamos à loja ela esquece as recomendações efetuadas e desata a contar a minha vidinha toda: com quem eu sou casada, e bem casada segundo ela, os filhos lindos que tenho e o sucesso da vida profissional. E o senhor José só pode ser um ser não invejoso, porque de outra forma com tanta gabarolice já estava retardadinha e atirada para uma sorte infame. Depois, não contente, desembainha a vida dos meus doze primos, não sem mentir um bocadinho. “Os meus sobrinhos são todos formados” diz ela, e quando a repreendo com o olhar ela emenda,”todos menos um, que não quis estudar mas também está muito bem na vida”. E vai por aí fora descrevendo teres e haveres, carros e roupas de cada um, filhos sobredotados e outras coisas apetecíveis ao apetite de invejosos. Acredito que para ela o sr. José não represente uma ameaça e desta forma ela não teça segredos ou barreiras. Porém, quando chegamos da compra e a vizinha Lucinda pergunta por cortesia o que fomos fazer à vila, a verdade é imediatamente ocultada e a resposta é dada de forma evasiva. Se a vizinha me pergunta onde passamos este ano o natal ela intromete-se na minha resposta e remata com um “ainda está para se decidir” para não manter a outra informada. A vizinha Lucinda é um ser que não associo nada a inveja sendo uma mulher sã e bem-disposta mas para a tia Gina ela representa perigo na matéria de inveja e disso percebe a minha tia. Eu bem lhe explico que essas pessoas são seres doentes e insatisfeitas, que nunca são felizes e a Lucinda é uma mulher positiva e não dada a essas coisas. Mas ele contra-ataca com provas: “Sabes aquela buganvília que eu tinha ali ao canto, por baixo da escada? Secou. Eu bem a vi a gabar-me a planta com um olhar guloso. Só pode ter sido ela. Invejou-me tanto a planta que morreu”.

E eu a pensar no meu friso de orquídeas carregadinhas de piolho, que já tentei eliminar vezes sem conta e tentar adivinhar quem terá sido que mas invejou? O pensamento mítico é tramado.

(texto publicado na edição em papel de 23 de março de 2012)