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O meu diário: Meu fã

Ela era minha doente e ele, o marido, vinha sempre a acompanhar. Ele sabia da medicação e assumia o papel de protetor, de cuidador.

Helena Vasconcelos, médica hml.vasconcelos@gmail.com

Ela era minha doente e ele, o marido, vinha sempre a acompanhar. Ele sabia da medicação e assumia o papel de protetor, de cuidador. Ela, displicentemente, não se envolvia, muito não se interessava, parecia trazer somente o corpo para fazer prova do que ele contava, deixando tudo o resto nas mãos dele.

Ele, entusiasta, alegre e, sobretudo, meu fã. Eu seguindo os conselhos da minha avó que eram dados a pensar em namorados e não em gente comum e que diziam: “a gente só gosta de quem gosta de nós”. Sempre tentei, na medida do possível, trilhar estes caminhos de reciprocidade. Ele gostava de mim, eu sabia-o. Respeitava-me e enaltecia-me. Gostava dos meus escritos do jornal que recortava e colecionava. Fez sempre questão de discutir comigo as estórias que escrevi, os comentários que dei e os palpites que teci. Chegava a aparecer antes da mulher para me contar um pormenor ou outro dela para não a magoar, para não ter de enfrentar a dureza e a objetividade das palavras. Apesar de ser muito mais velho do que eu, frequentava um desses programas de Novas Oportunidades. Tinha escolhido uma crónica minha como trabalho final. No dia-a-dia era operário fabril.

Um dia chegou eufórico e contou-me o que era o assunto mais destacado da família. Tinha comprado um daqueles carros que vulgarmente chamam “papa reformas”. Não seria preciso mais andar à chuva e ao frio, poderia marcar consulta para a hora que eu entendesse porque chegaria a qualquer hora. É quando me envergonho do meu conforto, do meu luxo, do meu bem-estar.

Quando ela chegou à consulta sozinha, de preto, sem ele, tudo se desmoronou. Não quis perguntar diretamente mas a minha cara denotou a incredibilidade. Ela, de lágrimas já secas, pediu ajuda. Vinha saber o que afinal andava a tomar. Ele tinha levado com a ele a posologia e era hora de ela tomar conta do assunto. Perguntei estarrecida o que tinha acontecido, parecia tão saudável, tão cheio de vida. A resposta veio nua, dura e crua: matou-se. Matou-se porque não aguentou o desgosto. “Sabe o carrito que tinha comprado, roubaram-no e ele não suportou o desgosto”. Uma lágrima traiu-me e ela consentiu-a. “Bem pode chorar doutora, tinha ali um amigo. Ele era seu fã”.

(texto publicado a 16 de maio de 2013)