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É sexta-feira foge comigo: “A vida”

“A vida” é um texto de Pedro Miguel, aqui apresentado em versão multimédia.

O Ramiro foi segundo o próprio, um dos melhores provadores de cidra das margens do Reno, mas quando chegou a Portugal, morria de saudades de um simples copo de tinto. A cerveja importada era boa, dizia ele.

– Mas se bebes muita, ficas com a boca a saber a flores. É como os pinhões, se comes muitos, ficas com a boca a saber a resina.
Diz a lenda que começou por trabalhar numa bomba de gasolina em Andorra a 2500 metros de altura, não se deu bem com o ar puro (ao que parece causava-lhe falta de ar), e foi para porteiro num hotel de luxo em Zurique, que fez amor com muitas mulheres casadas e milionárias e, graças a isso, arranjou um biscate na Federação Internacional de Atletismo o que fez com que chegasse, segundo o próprio, a tocar o sino de aviso da última volta numa prova dos 10 mil metros, nuns campeonatos mundiais no final dos anos 70
Parou no tempo, numa época que já não era a dele, completamente deslocado, a fazer lembrar os pais de alguém, quando perguntam com toda a naturalidade porque é que vai a um concerto, tendo o disco para ouvir em casa. As pessoas nem sempre o conseguiam aturar, mas se ele não aparecia durante algum tempo, todos perguntavam:
– Onde pára o Ramiro?
Um dia foram dar com ele a chorar em frente ao obituário instalado à entrada de uma praça. A novidade ali residia na choradeira, pois o Ramiro tinha o hábito de escrever com um baton (sabe-se lá arranjado onde) e para a indignação dos locais, “BOA VIAGEM” na superfície de vidro que protegia os pedaços de papel da funerária que anunciavam o óbito de alguém. Mas daquela vez o caso parecia muito sério:
– O irmão do Ramiro morreu! O irmão do Ramiro morreu! Mataram – no!
– Quem é que matou? – Perguntavam curiosos.
Ele acreditava em conspirações, em que o tratamento para uma data de cancros já tinham sido descobertos há mais de 20 anos, mas o lucro da indústria farmacêutica impedia que as pessoas tivessem acesso à cura.
– Mas tu tens irmãos?
– Agora já não! Agora já não…

texto/vídeo/música: Pedro Miguel
locução: Ricardo Carvalho
agradecimentos: Hugo Ferreira

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