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Cultura

José Fabião. Partiu o homem que sonhava todos os dias com fotografia

José Fabião deixa-nos aos 96 anos, depois de fotografar até aos 80. O homem que sonhava todos os dias com fotografia parte, mas continuará a ser “o” fotógrafo da cidade.

José Fabião deixa-nos aos 96 anos, depois de fotografar até aos 80. O homem que sonhava todos os dias com fotografia parte, mas a sua marca é indelével em Leiria: ele é, e continuará a ser, “o” fotógrafo da cidade.

Em 2015, na última entrevista ao REGIÃO DE LEIRIA, para o projeto “Encontro de gerações”, assumiu:

“Eu fui fotógrafo para sempre. Todos os dias sonho com fotografia. É uma coisa horrível, mas é verdade!”.

Em 2015, José Fabião recebeu o Galardão Afonso Lopes Vieira para o prémio Carreira. Para sempre será recordado como “guardião” de imagens e memórias de Leiria.

Deixa um vasto espólio fotográfico, que documenta décadas da vida da Leiria do século XX, e que está entregue aos cuidados do m|i|mo – Museu da Imagem em Movimento de Leiria.

Leia na íntegra a entrevista para “Encontro de gerações”, em que José Fabião conversou com o REGIÃO DE LEIRIA e com a fotógrafa Carla Portugal, e que foi publicada a 30 de abril de 2015:

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Encontro de gerações: Um tem mais mais do dobro da idade do outro. Mas José Fabião e Carla Portugal vivem com a mesma intensidade a fotografia

José Fabião: Quando se fala de fotografia em Leiria, o nome Fabião vem logo à baila. É o que dá uma vida inteira dedicada à arte. Aos 94 anos, mantém um humor certeiro e uma memória impressionante que lhe permitem ser um precioso contador de histórias. Começou aos 12 anos com um tio, teve estúdios no Bairro dos Anjos e na Praça Rodrigues Lobo, fotografou até aos 80 anos. Tem um espólio de milhares de imagens à guarda do m|i|mo. Já não fotografa mas sonha com fotografia.

Carla Portugal: Neta e filha de fotógrafos, aos 13 anos já acompanhava o pai Carlos aos casamentos. Logo aos 14 anos passou a fotografar sozinha: andava de táxi entre a casa da noiva, do noivo, a igreja e a boda… Hoje, aos 40 anos, fotografa e gere o negócio familiar de sete lojas em Leiria, Marinha Grande, Nazaré, Monte Real e Vieira de Leiria

Quando começaram a fotografar?
Carla Portugal (CP) • Fotografei o meu primeiro casamento com 13 anos. Fui com o meu pai: ele filmou, eu fotografei. Fiz o meu primeiro casamento sozinha com 14 anos. Dos 14 aos 18 fiz as reportagens ao fim de semana de táxi. Não foi há muito tempo, mas hoje era impensável.

Também chegou à fotografia pela ligação familiar…
José Fabião (JF) • Comecei aos 12 anos. O meu pai disse-me: “Vais trabalhar com o teu tio”. Comecei por varrer a loja, limpar o pó e depois ia fazendo fotografias, que não era o que é hoje. A partir daí trabalhei sempre em fotografia, até aos 80.

Quando descobriram a vocação?
JF • Mais tarde. Com 12 anos que pensar tem um rapaz? Disseram-me para ir trabalhar com o meu tio e aí é que começo a evoluir. Fui para a Photokina [feira de fotografia, na Alemanha] três anos, pago pela Agfa! Tinha amor à fotografia! Gostava de trabalhar na fotografia, no laboratório e tudo… Um dia chegou-me um rapaz e disse: “Sou fotógrafo, pode revelar-me este rolo?” Eu disse: “Não, não, está aqui o laboratório e revelador, faça favor”. E ele: “Mas eu não sei fazer…” E eu: “Então, faz favor, não diga nunca que é fotógrafo!” [risos]
CP • Um bom fotógrafo tem de estar no sangue. Quanto éramos pequeninos, eu e o meu irmão íamos com os meus pais para os casamentos. O meu pai não gostava muito, porque com 6 ou 7 anos, eu já queria por os noivos nas poses. Já tinha o bichinho. Vejo isso pelos meus funcionários, quando a sensibilidade está lá.

Que sensibilidade é essa?
CP • Essencialmente o olhar. É chegar a um sítio, olhar e ver o que muita gente não vê.
JF • Tem de se ter amor ao que está a fazer. Há quem diga: “O Fabião é um bocadinho aborrecido quando está a fotografar, porque é ‘um bocadinho para a direita’, ‘um bocadinho para a esquerda’… Mas a pessoa não se apercebe qual é a sua melhor fase, melhor expressão… É preciso conversar, ter noção do modelo. De outra maneira não tem hipótese. E um fotógrafo está sempre a aprender: um dia ia numa rua em Colónia e vejo fotógrafos numa montra. Pensei: como vão eles fotografar isto com estas luzes todas? Fiquei ali a aprender: iluminaram o interior com bastante luz para anular a luz de fora! Eu que tinha em Leiria de fotografar a montra da Singer, trouxe logo dois projetores de lá! Estamos sempre a aprender.

O que não pode fazer um fotógrafo?
JF • Tem que evoluir! Se se acomoda não passa da cepa torta.
CP • Infelizmente hoje acontece eu estar a fotografar uns noivos, passar por outro fotógrafo e ele não me cumprimentar. Há muita rivalidade. É mau não ser humilde e achar que sabe tudo.

Qual a diferença entre tirar uma fotografia e fazer fotografia?
JF • É completamente diferente! Às vezes ia na rua e via as pessoas fotografar contra a luz e chamava a atenção: ao contrário, sempre de costas para a luz!
CP • … hoje é diferente, com os flares, o pessoal procura o contra-luz…
JF • Pode-se fotografar contra a luz, tem é de se usar flash!
CP • Fazer fotografia é registar um sentimento. É chegar, observar o espaço e tirar o melhor partido do sítio ou da pessoa. Nem toda a gente tem sensibilidade para isso. Até se pode tirar uma boa fotografia por acaso. Mas o olhar é muito importante.

Hoje qualquer um é fotógrafo?
CP • Hoje qualquer um pensa que é fotógrafo. Qualquer um pode ser fotógrafo, como outra coisa qualquer. Há muitos “qualquer coisa photography”. Mas não é bem assim.

O que sente quando vê as suas fotografias antigas, José Fabião?
JF • A arte fotográfica hoje é diferente do antigamente. Os aparelhos são melhores, as ópticas são melhores… Já ela nasceu na fotografia!
CP • Acho que fotograva melhor antes do que agora! Há fotografias que tirei há um ano ou dois e parece que estou saturada. Olho para fotografias que tirei há 15 e 20 anos e é diferente. Outra coisa: hoje com o digital um fotógrafo tira mil ou 1.500 fotografias. Antes tirava 150 fotos e 150 fotos estavam boas! Era tudo manual e era tão fácil…

Chegou a fotografar com digital?
JF • Não gosto da qualidade. Olho para uma fotografia e percebo logo que é digital. As caras são lambidas. Não posso com caras lambidas!
CP • A grande questão é a nível dos pixéis.. Mas isso era no início…

Há algum preconceito dos fotógrafos relativamente a casamentos…
CP • Sim, mas já houve mais. Com a crise qualquer fotógrafo quer fotografar casamentos. Um fotógrafo razoável ganha bem num casamento. E agora não se pode dar ao luxo de não fazer casamentos. E hoje os próprios casamentos são diferentes do que eram há uns anos. Antigamente o casamento era mais “brejeiro”. Hoje qualquer pessoa faz um casamento inesquecível, com outra produção, em quintas ou hotéis, onde dá para fazer outro trabalho…
JF • Antigamente tínhamos o cuidado de preparar as pessoas para as fotografias. Hoje não, qualquer pessoa ‘traz, traz, traz’… [faz o sinal de disparar a máquina]. Tiram bonecos!
CP • Não é assim fácil… Hoje temos de ir com dez sacos atrás, é muita produção!

Vêm de duas famílias ligadas à fotografia. Que ideia têm uma da outra?
JF • Somos fotógrafos profissionais. Respeitamo-nos mutuamente e mais nada! Conheci o Carlos Portugal há muitos anos, ele fotografava de uma maneira e eu de outra.
CP • É um orgulho muito grande estar aqui à sua frente, senhor Fabião. Eu cresci a ouvir falar no seu nome. É um dia que vai ficar guardado na minha memória.

Na arquitetura diz-se que se é arquitecto para toda a vida. Na fotografia também é assim?
JF • Fui fotógrafo para sempre. Todos os dias sonho com fotografia. É uma coisa horrível, mas é verdade! Todos os dias sonho que estou a revelar, que estou no laboratório…

Tem uma máquina aqui [no lar Emanuel, onde José Fabião vivia e onde decorreu a entrevista]?
JF • Não. Fotografar para quê, para mim? Não tenho interesse.
CP • Às vezes penso: se não fosse fotógrafo, o que seria? Não chego a nenhuma conclusão. Não me consigo ver a fazer outra coisa. Acho que não tinha jeito.

 

Fotógrafo preferido JF • Marc Le Noir CP • David Lachapelle

Uma máquina JF • Nikon CP • Hasselbald H3D

Uma lente JF • Zeiss CP • Cannon 50 mm 1.4

Analógico ou digital? JF • Digital não! CP • Digital

Um fotógrafo com má iluminação é… JF • Como pode fotografar?! CP • Não é fotógrafo

O Instagram é… JF • Não sei o que é. Sou antigo! CP • O rei da fotografia móvel

Tem saudades do laboratório? JF • Não tenho saudades. Foi uma fase CP • Ainda temos laboratórios

Uma fotografia que gostava de ter tirado? JF • Acho que nenhuma CP • O ano passado, por exemplo, tinha tudo planeado para tirar fotografar uma determinada criança com dois camelos e não deu certo

Que opinião tem das selfies? JF • Não sei o que é! CP • Tenho uma opinião positiva. Além de divertirem as pessoas, conseguem-se fotos bastante criativas e espontâneas

E dos “paus de selfie”? JF •  [Depois de ouvir a explicação sobre o que são] É uma ‘chinesice’! CP • Prefiro os selfies

Como se limpa uma lente? JF • Antigamente tinha um produto para limpar. Já não me lembro do nome CP • Inicialmente com um borrifador de ar para retirar as maiores sujidades. Depois há vários kits de limpeza com pincéis, flanelas e soluções específicas

Há demasiados fotógrafos na região? JF • Sei lá! CP • Não sei, mas em relação a outras cidades até temos bastantes

Colódio húmido, cianotipia e daguerreotipia? JF • Isso é tudo ‘chinês’ para mim CP • Colódio húmido

O melhor amigo do fotógrafo é… JF • A luz CP • A luz

Como se fotografa um bom por do sol JF • Com uma boa máquina e um bom diafragma CP • Com um bom controlo de luz, mas essencialmente no momento certo

Um acontecimento para fotografar em 2015 JF • Já não é para mim… CP • Qualquer um de caráter cultural e artístico de extrema relevância

Manuel Leiria
Joaquim Dâmaso (fotografia)

(entrevista publicada a 30 de abril de 2015)

 


Secção de comentários

  • Rui Lopes disse:

    José Fabião,
    Tive o prazer de o acompanhar nos últimos anos no Lar Emanuel, onde residia e encantava a todos com a sua serenidade. Tinha um cuidado especial com a alimentação, fazendo-o de forma regrada desde há muitos anos. A sua longevidade também se deve a essa cautela com os exageros alimentares. Havia um petisco ao qual nunca resistia, Cabidela de Galo. E todos os anos lá fazia com ele e outros amigos ou com o filho, um almoço especial de Cabidela de Galo, cozinhada pelas cozinheiras do Lar Emanuel.
    Foi uma honra partilhar a conversa amena, a amizade e estes almoços de Cabidela com tão ilustre figura da cidade de Leiria.
    Até sempre Mestre Fabião (assim era o nosso cumprimento)!

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