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Tempo incerto: A fotografia

redacao@regiaodeleiria.pt

Não dedico este texto ao fotógrafo Joaquim Dâmaso pelo prémio da Society for News Design, que nada me acrescenta, mas porque lhe estou reconhecido. Estive para escrever sobre a sua foto quando a vi, há meses, na primeira página do “Região”.
A foto não retrata apenas uma mulher de oitenta e tal anos, amparada a um pau que lhe sustenta a dor, perdida num mar de cinzas, com um débil e inútil regador de plástico na mão. Esperança fútil de uma última barreira contra a tragédia em que todos nós, de alguma forma, também nos perdemos.

Aquela imagem, num momento de cruel e poética inspiração, na frieza de quem olha pela distância da lente, é a imagem da morte exangue de um certo País rural, envelhecido e impotente e do modo de vida que lhe está associado. Um País que foi sendo esquecido, enquanto se rasgavam auto-estradas, se promovia a fuga do interior, criando a ilusão de que éramos outros. Um tempo, um modo de estar e de ser irrepetível e para sempre perdido. Por tudo isso, a imagem é de uma beleza única, de uma tristeza profunda e de um desencanto sem fim.

É o registo simbólico das memórias que teimamos em querer esquecer, do Portugal incapaz de se pensar, de promover uma estratégia de desenvolvimento ou de segurança colectiva. Um Portugal que gostava de ser apenas um cenário moderno, intemporal. Um holograma digital, deslumbrado consigo próprio. Aquela fotografia incomoda-nos, porque existe a realidade que mostra, mas que demasiados gostariam de não ver. É a parte de nós que não cabe no retrato oficial de família. Um mundo que errava por aí perdido entre eucaliptais e zonas serranas, que o fogo ciclicamente desnuda, num espectáculo de surreal violência, com sabor de irrealidade, que nos levava a querer esquecer que aqueles mortos, feridos e traumatizados eram os nossos e não de qualquer outro lugar do mundo onde a guerra marca o quotidiano.

A foto do Dâmaso, como todas as fotografias que fixam um acontecimento singular ou um drama profundo da existência, não nos vai permitir esquecer mais esta tragédia e, assim, talvez, amanhã, alguém se continue a interrogar, para além das circunstâncias e da fragilidade da memória.

Escrito de acordo com a antiga ortografia

(Artigo publicado na edição de 1 de março de 2018)