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Restaurante Tia Alice é local de culto em Fátima

A fórmula do sucesso parecia simples e foi-lhe dada pelos sobrinhos: “Tia só tens de cozinhar como cozinhas para nós”. Foi isso que fez.

foto de meio corpo de Maria Alice Marto na cozinha do restaurante Tia Alice
Maria Alice Marto abriu o restaurante quando tinha 53 anos

Se houvesse um prémio Nobel de gastronomia, Maria Alice Marto já o teria recebido.  São 86 anos de uma vida intensa e cheia, 33 dos quais dedicados à cozinha tradicional portuguesa, num negócio inesperado, mas que levaram a que, no último jantar-conferência do REGIÃO DE LEIRIA, ela fosse uma das galardoadas com o Prémio Carreira, juntamente com Lurdes Graça, fundadora do restaurante Manjar do Marquês, em Pombal.

Cuidadosa na seleção dos produtos, senhora de um paladar apurado, decidiu, um dia, abrir a sua porta a estranhos, aos quais trata como se fossem da casa. Os sobrinhos anteciparam-lhe o sucesso: “Tia só tens de cozinhar como cozinhas para nós”. Ela comenta que, quem era exímia na cozinha era a sua mãe e a sua avó, mas perpetua a herança. José Saramago reconheceu-o e deixou-o escrito, apontando para um nobel da gastronomia. Não há milagre, nem mistério, o segredo está no cozinhar com o coração.  E o seu restaurante transformou-se em local de culto, recebe clientes de todo o país e de todos os cantos do mundo.

Maria Alice Marto é daquelas pessoas que nos faz sorrir com o coração e que nos conforta além do estômago. É aquela tia que todos gostaríamos de ter: cozinha divinalmente e faz-nos regressar aos nossos tempos de meninice.  Sentimo-nos em casa, em família, ante a vida e as histórias que a mulher trabalhadora, gentil, acolhedora e comunicativa tem para contar, ainda que vá comentando aqui e ali: “se calhar isto não interessa para nada”.

Maria Alice Marto é uma mulher que se afirmou logo ao nascer, ao vir ao mundo num Dia da Mulher. Viveu a sua infância numa casa frente à Igreja matriz de Fátima, onde os pastorinhos Francisco e Jacinta Marto foram batizados. Um apelido que ela também guarda no nome e que revela a pertença à família dos videntes.

O colégio de freiras

Um dia, na comum tarefa da apanha da azeitona, numa propriedade de seu pai, conheceu um jovem, José Clemente, oito anos mais velho, natural da aldeia de Casal Novo, (Atouguia, Ourém)  que ali trabalhava com a sua família.  Foi um amor à primeira vista e que, apesar das peripécias, teve um  final feliz, com o casamento, ainda que  à distância e por procuração.

Após a troca de olhares, seguiram-se bilhetes e pequenas conversas, além de uma ou outra dança em bailes. Aos 15, recebe um pedido oficial de namoro, uma carta entregue pelo amado  e, na história deste amor, há um primeiro beijo junto ao cemitério. O pai que não aprovava a relação, devido à condição económica humilde do rapaz,  envia a filha para um colégio de freiras, o Instituto Nossa Senhora dos Inocentes (Colégio Andaluz). Maria Alice soma quatro anos sem voltar a casa ou ver o amado. Durante esse tempo, apesar dos vários bilhetes e tentativas do seu namorado para a ver, nunca foi possível.

José Clemente decide seguir viagem para Moçambique e dedica-se a uma carreira nos caminhos-de-ferro. Mas o amor não termina com a distância. E é com ele lá e ela cá que casam a 3 de outubro de 1956, após intercessão da Madre Superiora a favor do casal. Tinha Maria Alice 22 anos. 

O amor e África

Foi o amor que a levou a África, o que conta com melancolia e brilho nos olhos. Sete anos depois deste amor proibido, sem contacto direto com o amado, e quase um ano depois de casada, embarca numa viagem de 22 dias a bordo de um navio de mercadorias para Moçambique, a 17 de junho de 1957. Ainda ouviu o seu nome ser pronunciado no altifalante do barco. Receou o pior, mas era só uma mensagem de boas-vindas do marido que a aguardava.

Ali permanece 16 anos, na cidade da Beira, trabalhando o seu marido nos caminhos-de-ferro onde fazia a ligação entre Beira e a Rodésia (Zimbabué). É neste período de uma grande felicidade que vê nascer e crescer seis dos sete filhos (a filha mais nova já nasce em Portugal), fruto de um grande amor e da cumplicidade existente no seu casamento.

“A minha vida em África era muito boa”, recordará posteriormente. Dedicava o seu tempo a cuidar dos filhos e da casa, mas também à costura: bordava e confecionava as roupas das crianças. “Eu dedicava-me muito à costura. Cozinha é que nunca sonhava”, comentaria. Ainda que continuasse a tomar notas e a encher cadernos com receitas.

De Moçambique, Maria Alice guarda também más recordações. Foi ali que perdeu uma  filha, que ali ficou sepultada, bem como o irmão. Voltou a sentir a grande dor da perda, já em 2010, com a morte do marido, falecido em outubro.

Uma curta viagem a Portugal, a  22 de agosto, por um período de férias, acompanhada dos cinco filhos,  em 1973, torna-se definitiva. Após a revolução de 1974, decide por óbvias razões permanecer em Fátima. O marido só regressou definitivamente a Portugal três anos mais tarde, apenas com a máquina de costura de Alice na bagagem. Tudo o resto ficou para trás. Os dois contentores com os seus pertences nunca chegaram a Portugal. “O que tive pena foi das fotografias”, diria mais tarde aos amigos. Sofreu, já em Portugal, a as peripécias e agruras de quem regressa dos territórios ultramarinos: “Viemos para cá e éramos retornados”.

Cuidar dos outros

A decisão sobre qual o destino a dar à taberna de seu pai, empurra Maria Alice Marto, influenciada também pelos filhos e sobrinhos, para a abertura de um restaurante naquele espaço. Foi a 23 de outubro de 1988 e Maria Alice Marto transforma-se na Tia Alice.

Ainda se lembra dos primeiros clientes e da energia de começar um negócio aos 53 anos e de trabalhar energicamente 14 horas por dia. Hoje, é a “maestrina” da orquestra bem afinada na cozinha, um projeto familiar relevante que conta com os filhos como sucessores, no empreendimento diário: das sobremesas ao receber os clientes, a família mantém o  ambiente intimista, discreto e familiar.

Ela, cujos olhos azuis guardam ainda a timidez da meninice, prefere ficar na cozinha, modestamente, depois de ter posto todo o amor no prato que confecionou. Os clientes reconhecem a sua mestria e fazem questão de lhe ir agradecer. Por ali já passaram nomes como José Saramago, Mário Soares, Maria Bethânia, José Tolentino Mendonça, ou Marcelo Rebelo. O atual Presidente da República fala do Tia Alice como o seu restaurante de eleição. Os seus cozinhados já mereceram aplauso de Valentino, Montserrat Caballé, Joana, Fafá de Belém, entre outros famosos. No Brasil, o passa-palavra fê-la ganhar reputação e prestígio, o que explica a presença de tantos brasileiros no espaço.

Há quem não dispense voltar repetidamente, mesmo que isso obrigue fazer muitos quilómetros. O Tia Alice é já um local de peregrinação de grupos e convivas, mas importa fazer reserva.

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