Procurar
Assinar

Subscreva!

Newsletters RL

Saber mais
Cultura

Caldas da Rainha: Uma cidade onde a criatividade se molda entre tradição e futuro

Caldas da Rainha é hoje um território onde a cultura tem um papel estratégico, não apenas como motor económico ou atrativo turístico, mas como instrumento de qualificação, inclusão e sustentabilidade. É uma das cidades criativas da UNESCO.

Há cidades que carregam uma herança. Outras que projetam futuro. Caldas da Rainha faz as duas coisas ao mesmo tempo, moldando com as mãos, reinventando com ideias.

O reconhecimento da UNESCO como Cidade Criativa no domínio do Artesanato e Artes Populares, atribuído em 2019, assenta precisamente nessa dualidade: um território com raízes profundas na tradição cerâmica, mas que soube criar, nos últimos anos, um ecossistema vivo, experimental e colaborativo, onde arte e comunidade se encontram.

A distinção da UNESCO é o resultado de um processo coletivo que envolveu dezenas de agentes locais, desde artistas, associações, escolas, curadores, instituições de ensino e o próprio município, e que deu origem a uma cidade onde a criação artesanal deixou de estar confinada a ateliers isolados.

A base do modelo caldense é a cocriação. Desde 2016, com a preparação da candidatura à Rede das Cidades Criativas da UNESCO, que Caldas da Rainha optou por um caminho de participação ativa da comunidade. Em vez de impor uma lógica institucional fechada, a estratégia passou por envolver as chamadas “forças vivas do território”, dando espaço e voz a coletivos como a OSSO, a ADOC, a CENTRA ou a Destino Caldas.

Essas entidades, longe de serem meros executores, tornaram-se copromotoras de eventos e projetos com curadoria própria, onde se cruzam o saber tradicional, a arte contemporânea, a experimentação, a educação e a reflexão crítica. Oficinas de cerâmica, residências artísticas, exposições, performances, ciclos de programação e até passeios temáticos ocupam hoje diversos espaços da cidade, dos museus aos mercados, das ruas às montras.

Para além dos eventos pontuais, o que se destaca é a continuidade. Há uma presença constante de cultura no território, alimentada por quem aqui vive, estuda, trabalha e cria. A lógica da rede, de ligações horizontais entre artistas, instituições, espaços e públicos, tornou-se a espinha dorsal do ecossistema.

Quando o ateliê sai à rua

A ceramista Amélia Sá Nogueira é uma das muitas protagonistas desta nova Caldas criativa. Depois de mais de 30 anos a produzir azulejaria de aresta do século XVI num ateliê em A-dos-Francos, decidiu em 2022 abrir uma loja-ateliê no centro da cidade.

“A nossa ideia era ter um espaço que funcionasse como montra do que fazemos. Pensámos em vários locais, como Lisboa e Óbidos, mas foi aqui nas Caldas que tudo fez sentido”, conta. A decisão foi estratégica. “Era mais perto da produção, mas, acima de tudo, o contexto da cidade estava alinhado com aquilo que procurávamos”, sublinha.

A surpresa veio depois. “O público aqui é completamente diferente. Em Lisboa, trabalhávamos essencialmente com turismo. Aqui temos pessoas muito mais conhecedoras, que vêm às Caldas porque procuram a cerâmica, o trabalho artesanal, o saber fazer. Isso está diretamente ligado à imagem da cidade enquanto criativa.”

O espaço que abriu é hoje muito mais do que uma loja. É um ponto de contacto com a tradição e com a experiência artística. “Temos um pequeno espaço de demonstração ao vivo. As pessoas vêm ver como se pinta o azulejo, como se trabalha a técnica antiga, e muitas vezes querem experimentar. Há uma curiosidade genuína, uma vontade de perceber, não é um público de impulso”, destaca.

Essa ligação com o público levou a artesã a alargar ainda mais o alcance do projeto. “Começámos a organizar passeios temáticos pela cidade, focados na azulejaria. As pessoas querem entender a ligação entre a peça e o espaço urbano. Faz sentido mostrar que a cerâmicada cidade”, diz Amélia Sá Nogueira.

Um território com muitos autores

A vitalidade do setor é visível no número crescente de ateliês e projetos em desenvolvimento. “Nos últimos anos houve um aumento brutal. Não sei quantos somos neste momento, mas basta ver o que aconteceu desde o livro “O Roteiro dos Ceramistas”.

Hoje há novos autores, novas lojas, novas oficinas, quase pequenas incubadoras de ateliês. E há uma coisa muito bonita: muitos dos criadores têm uma identidade tão própria que, fora das Caldas, já se consegue reconhecer o autor de uma peça só de olhar para ela”, salienta a ceramista.

Essa identidade múltipla é, para Amélia Sá Nogueira, uma das maiores forças do ecossistema. “Enquanto noutros locais ligamos automaticamente a cerâmica a uma estética – como Barcelos ou Nisa – aqui temos uma diversidade enorme. Barristas, escultores, designers, artistas plásticos. Cada um com o seu percurso, mas todos a puxar pelo coletivo.”

Apesar de haver uma marca que é uma grande referência, a Bordallo Pinheiro, a força vem da comunidade. “É uma cidade onde não existe uma empresa de dimensão gigante, mas onde existem vários microcosmos criativos que se apoiam entre si. Isso cria uma atmosfera única”, sublinha.

Outro ponto importante para a ceramista são as condições locais. “Temos acesso fácil a matérias-primas, a fornos, a técnicas partilhadas. Temos o CENCAL, a ESAD, temos técnicos que ajudam com vidrados ou processos mais complexos. E temos eventos que nos ligam ao exterior, como o Encontro Internacional de Cidades Cerâmicas, ou o Bazar à Noite. São momentos que trazem pessoas e criadores de todo o mundo”, destaca.

A universidade como motor e radar

A presença da ESAD.CR (Escola Superior de Artes e Design) e do CENCAL tem sido fundamental para alimentar este ecossistema, trazendo talento jovem, investigação e massa crítica. Muitos dos criadores que hoje trabalham nas Caldas vieram de um ou outro destes polos. Mas o contributo vai além da formação técnica ou artística.

João Santos, responsável pela Cátedra UNESCO em Gestão das Artes e da Cultura, Cidades e Criatividade, sediada na ESAD.CR, destaca a importância de articular prática, pensamento e política cultural.

“A cátedra tem promovido colóquios, seminários, conferências e publicações com impacto local, nacional e internacional, sempre em articulação com o município e com entidades como o LiDA, o Plano Nacional das Artes ou a DGArtes”, explica. A lógica de atuação assenta na ideia de que o pensamento crítico deve acompanhar a prática artística e ajudar a orientar políticas públicas para a cultura.

Um dos projetos mais relevantes em curso foi a colaboração na redação da Adenda à Carta de Porto Santo, escrita entre Caldas da Rainha e Loulé, e que servirá de suporte a futuras políticas culturais da União Europeia. “Essa adenda é um contributo muito concreto para reforçar a ideia de democracia cultural, cocriação e diversidade de expressões artísticas. É também uma afirmação de que as cidades criativas têm responsabilidade política no campo da cultura”, afirma João Santos.

Outro marco foi o lançamento do primeiro curso de Mediação Cultural e Artística em Portugal, promovido pela cátedra em parceria com cinco politécnicos e com a DGArtes. A formação destinou-se a técnicos de estruturas culturais municipais de todo o país, muitos deles oriundos de pequenas cidades e vilas que enfrentam desafios semelhantes aos das Caldas.

“A ideia é capacitar quem trabalha no terreno, dar ferramentas para lidar com públicos diversos, e para posicionar a cultura como fator de inclusão e desenvolvimento social.”

A nível internacional, a cátedra e a ESAD.CR têm sido agentes ativos na construção de redes. Em 2022, Caldas da Rainha organizou, com Alcobaça, o congresso da Academia Internacional de Cerâmica, organismo afiliado da UNESCO.

“Foi um momento marcante. Recebemos dezenas de artistas de cidades criativas de todo o mundo, e lançámos uma chamada internacional para residências artísticas nas Caldas. Isso é mais do que visibilidade, é influência cultural.”

Identidade e projeção

O reconhecimento da UNESCO deu projeção, mas também responsabilidade. Para Amélia Sá Nogueira, há ainda passos a dar: “Falta trabalhar a marca Caldas Cidade Cerâmica lá fora. Temos qualidade, temos conteúdo, temos tradição e inovação — agora é preciso mostrar isso ao mundo.”

Outro desafio está no acolhimento ao visitante. “Temos pessoas que nos perguntam: ‘Onde posso ver mais ateliês?’. E muitas vezes não há resposta imediata. Mesmo com roteiros e mapas, não há um espaço comum onde esteja representada a produção local. Um lugar aberto ao público, que funcione como montra da diversidade que existe.”

Apesar disso, o saldo é claramente positivo. “Ganhamos todos com este ambiente. Quando um autor é valorizado, todos os outros crescem com isso. Não é um trabalho individual, é um esforço coletivo”, afirma Amélia Sá Nogueira.

Joel Ribeiro


Deixar um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos relacionados

Subscreva!

Newsletters RL

Saber mais

Ao subscrever está a indicar que leu e compreendeu a nossa Política de Privacidade e Termos de uso.

Artigos de opinião relacionados