A seguir ao pós guerra, em 1946, um grupo de jovens começa a cantar no Jardim Luís de Camões, em Leiria, e assim surge o grupo coral que mais tarde daria origem ao Orfeão de Leiria e à escola conceituada que é hoje.
Meio século volvido, por exemplo, na década de 90, a cidade experimentava os primeiros ares de contemporaneidade: melhores redes viárias; o crescente movimento populacional em direção aos grandes centros urbanos; o aumento do grau de escolaridade dos jovens; a expansão da urbanização, criaram um fenómeno.
Quem estudava fora, nomeadamente em Lisboa e Porto, passou a vir mais vezes a casa e com isso traziam notícias da linha da frente. Numa altura sem a internet como hoje a conhecemos, as sextas à noite ali na avenida Heróis de Angola, na rodoviária, desembarcavam amigos que estudavam fora. Empunhavam revistas, discos ou simplesmente cassetes gravadas de bandas que eram novidade para partilhar.
Estávamos sedentos de novidades. E isto começa a mudar, cresce uma outra massa crítica leiriense, diferente da dos anos 80 e anteriores, mais alinhada com o resto da Europa, com mais mundo, mais escolarizada, mais viajada, a querer intervir no espaço público, a pensar a cidade sob outros prismas. Estas memórias são o património imaterial de que é composto o ADN da Leiria Cidade Criativa da Música (LCCM).
A cidade e o seu concelho tem uma forte tradição empresarial, sendo considerada um importante centro económico com um ecossistema empreendedor vibrante. Aliado ao facto que a única fábrica de CDs do país – e da Península Ibérica – se encontra na Barosa e também que uma das raras fábricas de vinil da Europa, esteja a laborar ao pé da Maceira, é só juntar, literalmente, as peças.
Para além das outras características que levaram à distinção da cidade ao estatuto de cidade criativa numa área que trata por “tu”, isto confere a esta região a condição de fábrica da música por excelência. Isto não se inventa e não há como escapar.
A relação umbilical de Leiria com a música é um caso sério de amor à arte no seu todo. A participação da iniciativa privada no desenvolvimento musical local tem sido notória, com o sector terciário: Leiria tem duas editoras discográficas (Omnichord e Rastilho Records) sediadas em Leiria, mas de perfil nacional.
Por outro lado, a Rastilho Distribution vende música em diversos formatos, livros e merchandising musical com uma vocação exportadora. Igualmente diversas associações culturais assumem um papel ativo na área da música.

Paralelamente, observam-se noutros pontos do país, iniciativas municipais que integram a valorização de recursos humanos e a criação de infraestruturas dedicadas à música, como é o caso das fonotecas. Estas constituem espaços de arquivo, investigação e divulgação sonora, com impacto reconhecido em políticas culturais locais. Este equipamento assentaria como uma luva em Leiria, criaria emprego e reteria talento.
Em alguns contextos culturais, a simplificação de procedimentos administrativos tem também sido apontada como um fator que contribui para a dinamização do sector.
Ainda recentemente o trabalho realizado no âmbito da cidade criativa de Leiria nos últimos quatro anos foi classificado com “Muito bom” pela UNESCO, o que demonstra estar no bom caminho. A ambição – que existe – em rumar até uma classificação de “Excelente” terá de ser um horizonte em análise.
Neste sentido, Gonçalo Lopes, presidente da Câmara Municipal de Leiria, refere-se à distinção leiriense como um “reconhecimento justo do trabalho consistente e inovador que os nossos agentes culturais têm vindo a desenvolver”.
O autarca adianta ainda que a chancela internacional “reforça a identidade criativa do território, valoriza o talento emergente, projeta Leiria internacionalmente e incentiva a criação artística com impacto real na comunidade”.
Alinhado com os valores que suportaram a candidataram a Cidade Criativa da Música, refere também o compromisso com a comunidade cultural: “continuar a criar condições para que a música e a criatividade sejam motores de inclusão, cooperação e desenvolvimento sustentável”, refere.
No que concerne à continuidade do projeto e planos para o futuro, Gonçalo Lopes deseja “continuar a reforçar esta dinâmica criativa com novos projetos que promovam a participação e a inovação, consolidando espaços como a Black Box como centros vivos de cultura ao serviço de todos”, conclui o presidente de câmara.
Em 2024, Leiria submeteu o seu relatório bienal à UNESCO — um documento de 34 páginas — que avaliou positivamente a cidade, reforçando o seu papel enquanto Cidade Criativa da Música. O relatório destacou ações alinhadas com as diretrizes da UNESCO, como a igualdade de género, a diversidade cultural e a sustentabilidade.
Leiri@Paris: exportar talentos e importar inspiração
Um exemplo concreto de projeto desenvolvido no âmbito da rede é o Leiri@Paris, que promove artistas locais em parceria com a Casa André de Gouveia, na Cidade Universitária de Paris.
Esta instituição é dirigida, desde setembro de 2023, pelo pianista e investigador João Costa Ferreira, com origens em Leiria e que reside em França há vários anos.
Este projeto inclui concertos com artistas como Inês Condeço – que atuou a 20 de maio – e ainda Estela Alexandre – tocou a 3 de junho – e mais para o fim do ano será a vez de José Guilherme e Pedro Santos.
Estes eventos combinam paridade de género, conversas sobre a trajetória de cada artista e degustação de produtos regionais.
A vereadora da Cultura da Câmara de Leiria, Anabela Graça, destaca o facto do projeto Leiri@Paris concretizar “uma das dimensões prioritárias do município e da Leiria Cidade Criativa da Música, no que se refere à aposta na internacionalização do capital criativo dos leirienses”.
Mas há muitas outras atividades que se destacam, como o projeto Ode ao Barro, de Mário Teixeira, um projeto do Orfeão de Leiria, acarinhado pela rede criativa, e claro, o nome mais genial de sempre para um conjunto de percussionistas de bilhas de barro da Bajouca: o Trio Marabilha.
Rui Cunha, chefe de divisão da cultura da câmara municipal de Leiria refere que “nós estamos sempre muito ligados àquilo que a UNESCO fixa como metas e como princípios de orientação”.
Alude ainda ao papel da sustentabilidade nos eventos culturais e à importância de compatibilizar a programação com o quotidiano dos residentes, num contexto de crescente escrutínio político à cultura como geradora de impacto nas cidades.
Nesse sentido, o Concurso Internacional de Composição procura estimular a criatividade dos jovens compositores, proporcionando visibilidade e experiência prática, com as obras interpretadas em festivais.
E depois há o Roteiro Musical de Leiria que tem como objetivo dar visibilidade a músicos e compositores locais, com utilização de QR codes para acesso a informações sobre artistas e locais culturais. O projeto foi apresentado em Itália e já está a ser replicado por outras cidades.
Leiria está a fazer escola.






A arte que cresce e se liga entre si
Há novos projetos para o futuro: Caldas da Rainha, no Artesanato e Artes Populares, juntar-se-á a Óbidos, Capital da Literatura, e a Leiria, cidade criativa da Música, numa parceria estratégica que visa potenciar a cultura local, impulsionar o turismo criativo e projetar estas gemas culturais portuguesas além-fronteiras, com o apoio de financiamento comunitário.
Numa outra frente, o projeto Filarmonia – Música para Todos, visa a inclusão social de jovens migrantes e com dificuldades escolares através da música. O projeto prevê a integração desses jovens em 11 filarmónicas do concelho de Leiria, com formação individual e em grupo de instrumentos musicais, contribuindo para a atualização do repertório e revitalização das filarmónicas locais.
Também agregadoras são as oportunidades de juntar música a outras artes, o que é sempre uma boa ocasião. No Centro Cívico de Leiria são organizadas exposições de arte (fotografia, pintura, escultura) e na sua inauguração são sempre acompanhadas de intervenções musicais.
Com olhos postos no futuro, está também prevista, para o último trimestre, uma exposição itinerante da Rede e todas estas Cidades Criativas do centro do país – o consórcio é liderado pela cidade da Covilhã – com o objetivo de mostrar ao público o que é uma Cidade Criativa da UNESCO, com temáticas que fundem música, literatura, artesanato e sustentabilidade.
A exposição terá como localização prevista a Fonte Luminosa, em Leiria, assim como nas outras cidades da rede.
A Vila Portela, local amplamente aguardado, será o novo espaço de arte contemporânea de Leiria, onde será desenvolvido igualmente um programa cultural e fruição do seu jardim.
Para o último fim de semana de outubro está prevista a inauguração do artista João Paulo Feliciano (Caldas da Rainha, 1963), pertencente à Coleção de Serralves. A vinda do artista insere-se num protocolo de quatro temporadas com Serralves onde todos os anos será disponibilizada a Leiria uma exposição do seu acervo.
Esta primeira exposição estará muito ligada à música, já que Feliciano tem diversos trabalhos, especialmente dos anos 1990, que gravitam muito em torno do mundo da música rock e instalação artística. Feliciano pertenceu à banda Tina & the Top Tem, sendo um dos principais protagonistas da então chamada “Cena Musical das Caldas”.
Na conversa que o REGIÃO DE LEIRIA teve com Rui Cunha, foi mencionada a criação de um diretório de agentes culturais e associações ligadas à música, com o objetivo de mapear e valorizar a sociedade criativa local e a importância de olhar para as indústrias criativas como parte integrante do desenvolvimento cultural e económico.
O investimento na cultura é encarado como essencial, não como despesa, mas como motor de transformação social e económica, com destaque para o apoio às associações locais e à infraestrutura cultural, como a Black Box, equipamento cultural que tem acolhido um grande número de produções e ensaios desde a sua abertura. A internacionalização, a criação de produtos culturais transacionáveis e a cooperação entre cidades criativas são linhas estratégicas em implementação.
Por fim, é sublinhada a importância da cultura como pilar fundamental face aos desafios sociais contemporâneos, numa visão alinhada com os princípios da UNESCO, onde a cultura deixa de ser um acessório para se afirmar como um vetor essencial de desenvolvimento, tal como a educação, a saúde e a água potável. Os agentes culturais têm um papel ativo e responsável na definição das políticas e prioridades do futuro.
A aposta na cultura como motor de desenvolvimento sustentável e inclusão social é o traço comum que une Idanha-a-Nova, Óbidos, Caldas da Rainha, Leiria, Covilhã e Castelo Branco na Rede das Cidades Criativas da UNESCO. Mais do que um selo distintivo, a adesão à rede representa um compromisso com a inovação, a preservação do património local e a cooperação internacional.
De Leiria, a “fábrica da música”, à Covilhã, pioneira no Design, passando pelas artes tradicionais de Caldas da Rainha e Castelo Branco, pela literatura de Óbidos e pela música eletrónica e tradicional de Idanha-a-Nova, estas cidades demonstram que a criatividade é um recurso vital para o futuro das comunidades.
Ao alinhar esforços e experiências, o Centro de Portugal consolida-se como uma referência global no uso da cultura para construir cidades mais coesas, dinâmicas e preparadas para os desafios do século XXI