Certificou-se, da porta aberta silenciosamente, que ele dormitava no cadeirão. A luz do fim da tarde penetrava pela janela parcialmente velada. Era possível vislumbrar lá fora o contorno verde escuro de uma colina arborizada e, num plano mais próximo, os telhados e os últimos pisos de um quarteirão urbano.
Compôs a manta que lhe protegia as pernas e passou-lhe ao de leve a mão pela testa. Ouviu-o sussurrar, como se o sonho irrompesse a semiconsciência:
– Porque vieste, então, a esta cidade?
Ela continuou o périplo pelo quarto, repondo a ordem dos objetos retirados do seu lugar próprio.
– Para continuar o jogo! Respondeu ela, baixinho, levando o candeeiro de pé para junto da secretária.
– Donde vens? Perguntou ele, continuando de olhos cerrados e respiração de adormecido.
– Do norte, de onde as cidades têm a energia do granito. – E da indústria. Pegou nos jornais espalhados pelo chão e cadeiras e deitou-os no cesto dos papéis.
– Onde domina o granito, há rios poderosos – comentou ele.
– Vales profundos, margens arroteadas com sofrimento sem par. – E cidades que sonham pontes. Procurou no roupeiro sítio onde arrumar o casaco de malha abandonado nas costas da cadeira.
– Cidades que adoram ser cortejadas…
– Mas não seduzidas. Retorquiu ela.
– Pois, são cidades guerreiras… – Amas a tua cidade! Ele continuava sem dar sinais de ter acordado.
– A cidade onde crescemos acompanha-nos pela vida toda. Deitou-lhe água no copo e substituiu o guardanapo amarrotado.
//= generate_google_analytics_campaign_link("leitores_frequentes_24m") ?>– Que fazes por ela, a tua cidade?
– Imagens.
Ele abriu os olhos, finalmente, e encarou-a fascinado.
– Capturas a tua cidade?
– Não é isso, acho eu. A fotografia dá atenção às coisas pequenas de que se faz a cidade. Repara: a roupa que se estende à janela nos domingos de sol. É sempre diferente. Há ruas que percorro centenas de vezes e, de cada vez, descubro novos aspectos, novos ângulos.
– Parece que descobriste a passagem entre as pedras e o tempo. – Sozinha?
– Há um amigo meu que me acompanha às vezes. Sorriu, enquanto lhe ajeitava o colarinho da camisa branca. – Mas parece mais interessado em mim que na cidade.
– Na tua cidade, as mulheres sorriem?
– Cantam com os lábios, sim, mais do que com a voz.
– E tu, sorris sempre assim?
Olharam-se de frente. Ele reparou no belo vestido estampado de flores em amarelo, verde e azul, uma mão acima do joelho, nas sandálias de couro que realçavam a elegância do corpo. Ela rodopiou sobre si própria, mirando-o furtivamente, para avaliar o efeito que produzia.
– Só para quem espera de mim este sorriso.
(texto publicado na edição de 30 de abril de 2014)