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Cidade imaginária: Cruzamentos

– Obrigado – disse ela – sem a sua concordância, quanto tempo teria de esperar?

João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com
João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com

– Obrigado – disse ela – sem a sua concordância, quanto tempo teria de esperar? – Não – retorquiu ele – sei reconhecer um golpe de sorte: em vez de jantar sozinho, fazê-lo com uma bela companhia. – Mas nem me conhece! – respondeu ela. – Nada que rapidamente não possamos resolver. – Clarice, muito prazer. – O prazer é meu, João.

Explicara-lhe o empregado, tinham sido registadas duas marcações de mesas individuais para a mesma hora. A dele tinha prioridade, mas deixaria em espera prolongada uma outra cliente. Ele anuíra em dividir a mesa. Nas imediações não havia outro restaurante.

– É este o “fim do mundo” – exclamou Clarice, depois de se terem sentado. Tinha um sorriso generoso, como se nele implicasse o corpo todo. E acrescentou – Não foi nada fácil aqui chegar. – Foi então a primeira vez? E veio de longe, de muito longe? – Do Porto. – No “fim do mundo” há quem encontre o “paraíso perdido”. – É por isso que aqui vem? – E porque não?

Embrenharam-se em seguida na consulta da ementa. – Help! Traduza-me: “pezinhos de coentrada”, “peixinhos da horta”, “ensopado de borrego”, “sopa de cação”. O “fim do mundo” é um restaurante cabalístico? Ele riu-se. – Bem-vinda a sul. Não sabia que Almada é porta de entrada do Além Tejo? – Reino de mouros, observou ela com ironia. – E das cidades.

Clarice vestia calças pretas com estampados em amarelo e uma blusa também preta e trazia um anel com uma placa vitrificada em fundo azul com reflexos dourados. Na cadeira depusera um saco e uma nikon 5100.

O empregado destinara-lhes uma mesa colada às guardas envidraçadas do restaurante. Na parte exterior, em pleno passadiço, todas as mesas tinham sido ocupadas por um grupo, talvez de tripulantes de um navio francófono. Ao espelho do rio chegavam ainda laivos do pôr do sol. O ruído dos talheres e das conversas abafava o som da ondulação contra as paredes do cais.

– É fotógrafa? – perguntou João. – Profissionalmente não, mas a máquina anda sempre comigo, mesmo quando a deixo em casa. É como se a minha visão da cidade tivesse de ser enquadrada por uma objetiva. – E como vê Lisboa, daqui? – Em primeiro lugar, a silhueta: uma cidade de linhas adoçadas pelo tempo. Em segundo lugar, a luz: uma cidade que irradia uma luz própria, que não se limita a absorver e retransmitir. – Continue, pediu ele. – Em terceiro lugar, as camadas: uma cidade de cruzamentos.

Percorriam agora o caminho que os conduziria até ao elevador da Boca do Vento. Ela quis descer da plataforma empedrada para junto da água, procurando um ângulo mais fechado para registar o vulto da cidade projetada sobre o seu rio. Ele fez menção de a acompanhar. – Preciso por instantes da tua mão, João – disse ela.

(texto publicado na edição de 24 de julho de 2014)