Quando o comandante assomou às escadas do primeiro andar da creperie, na Place de La Libération, ela já o aguardava. Chegara antes, em sinal de deferência para com quem viera de tão longe, sabendo que ele seria pontual.
O tempo estava agreste, como seria de esperar na Bretanha. O comandante vestia camisola de lã grossa, de cor natural, calças de sarja azul impecavelmente passadas. Quando a avistou, esboçou aquele seu sorriso adolescente, imprevisível num rosto severo e vincado.
Tinham-se conhecido, seis meses antes, no Clube dos Veteranos, por ocasião de uma receção organizada em honra da fragata portuguesa que aportara à cidade. O pai, membro da direção do Clube, insistira no convite, e ela desafiara duas amigas a fazerem-lhe companhia.
Pouco conhecia sobre Portugal e portugueses. Na escola primária, onde lecionava, havia alguns filhos de portugueses recrutados para obras. Lera as notícias de uma revolução militar recente que libertara o País, e talvez tivesse sido esse o motivo que a atraíra ao Clube.
Depois das boas-vindas, o comandante apresentara-se e convidara-a para dançar. Era um bom dançarino, tolerante para com a suas falhas, e, em retribuição, ela ofereceu-se para o guiar numa visita à cidade.
Percorreram-na nos dias seguintes e trocaram histórias de vida. Ela apercebeu-se de que estava perante um oficial com uma biografia invulgar. Ingressara como voluntário na Marinha aos dezasseis anos. Órfão de pai, trabalhava então num oficina de automóveis. Com persistência e sacrifício, concluíra, já depois dos trinta anos, estudos liceais e de engenharia, ultrapassando as barreiras de acesso ao oficialato. Retido em missões no mar, sem poder frequentar aulas regulares, tal feito era quase inimaginável.
//= generate_google_analytics_campaign_link("leitores_frequentes_24m") ?>Ela também tinha uma história singular. Fizera-se adolescente durante a ocupação alemã da cidade, um porto estratégico para o controle da navegação marítima e aérea no Norte da Europa. O pai e tios ingressaram na Resistência e ela própria se envolveu em ações de apoio aos maquisards. Os nazis retaliaram, com deportações, execuções e bombardeamentos. A reconstrução fora uma grande obra em que se empenhara com raiva e orgulho.
O nexo surgido entre ambos, na partilha de memórias reencontradas, crescera depressa. Ele tinha quase cinquenta anos e ela pouco mais de trinta. – E se eu me apaixonasse por si? – inquirira, irónica, à despedida.
Seis meses depois da pergunta irrespondida, durante os quais correra o silêncio entre ambos, ela convidou-o a sentar-se. Para inquirir, de imediato:
– Comandante Armando, que o traz por cá? Que é que esta cidade tem que justifique este seu regresso? Porque me procurou?
– Perguntas, menina Danielle, a que espero responder com a sua ajuda – disse o comandante.
(texto publicado na edição de 26 de junho de 2014)