Falemos de leis e de assaltos, falemos da “revolução” que se prevê no PL 118 que, ao que tudo indica, vai ser aprovado pela generalidade dos partidos com assento parlamentar.
Segundo este diploma, todo o ser humano é um potencial pirata e qualquer dispositivo eletrónico com memória (seja uma pen, uma impressora ou um frigorífico) tem como principal utilização a cópia de obras protegidas por direitos de autor e, por isso, deve passar a ser taxado convenientemente (podendo o seu preço aumentar entre 5 a 200%, conforme as características técnicas de que disponha).Essa verba vai ser gerida por uma instituição e, como se destina a uma compensação devida aos autores, imagine-se que, depois de toda a burocracia e divisões e gastos administrativos, os autores cheguem a receber cerca de 10% do valor total das receitas das taxas (e depois pagam os impostos devidos sobre esses 10%).
Creio que esta punição preventiva aos consumidores, se aceitável, peca por defeito. Tenho mesmo a noção de que, seguindo a lógica, deveriam taxar tudo o que permite copiar obras ou ideias de outros como o papel, as canetas, os óculos ou a capacidade de raciocínio. Aliás, podiam impor exames de QI e taxar cada pessoa em função do respetivo nível, ou taxar os nascimentos (até porque cada nascituro é um potencial pirata).
//= generate_google_analytics_campaign_link("leitores_frequentes_24m") ?>Alastrando a outros domínios, consigo imaginar, dentro de pouco tempo, o Ministério da Justiça a poder taxar anualmente todos os cidadãos pela probabilidade de virem a blasfemar ou a necessidade de, ao pagar o imposto de circulação automóvel, também poderem impor uma taxa obrigatória para a possibilidade de vir a ser excedido o limite de velocidade com o veículo.
Lembrei-me de trautear novamente uma canção de um programa de televisão de há muitos anos: “Somos piratas, só não trazemos as gravatas porque não sabemos fazer nós. Há mais piratas e com gravatas mas afinal os piratas somos nós”.
(texto publicado na edição em papel de 3 de fevereiro de 2012)
J Esteves disse:
… o que não tira sentido ao comentário "afinal os piratas somos nós" — porque ao passo que o "prejuízo" é vago a "compensação" (que a AFP rotula de "simbólica") está bem especificada e é bem substancial. Se os autores e promotores do PL118 simpatizam com a ideia de o direito de autor ser direito de propriedade e se apresentam como campiões do respeito pela propriedade, não seria grande incoerência chamarem eles próprios "extorsão" ao que o PL118 institui. Ou mesmo "pirataria", num sentido não muito distante do mais tradicional.
J Esteves disse:
O PL118 não tem a ver com cópias "piratas". Tem a ver com a cópia privada do que se adquiriu de forma legítima (exemplo: copiar música de um CD que comprámos para um disco rígido nosso ou para outro CD nosso noutro formato), sob argumento de "compensação equitativa" para um "prejuízo" de que *ninguém* apresenta sequer estimativas — como o próprio representante da Associação Fonográfica Portuguesa reconheceu na A.R. perante os deputados do grupo de trabalho dedicado ao PL118.
Ou seja, nem sequer somos presumidos criminosos. Somos, no contexto desta legislação, apenas presumidos causar, em actos legais, um "prejuízo" que deve ser "compensado". Somos, no contexto do discurso típico dos promotores do projecto de lei, utilizadores de armazenagem que serve para pouco mais que a cópia de "conteúdos" vindos dos associados que representam.
E é normal que se propague no público a confusão, porque precisamente nesse discurso, em insinuações sobre os nossos hábitos, são passadas de forma não propriamente subliminar referências a actos sem nada a ver com o contexto do projecto de lei. Ou seja, a cópia privada é o contexto e a sustenção jurídica do PL118 — e os promotores dele não podem dizer nem dizem o contrário se questionados formalmente — mas a "pirataria" (aspas, muitas) é a sustentação emocional a que os mesmos promotores recorrem habitualmente, amplificada por falta de jornalismo e depois na nossa conversa diária até tomarmos consciência clara do que está em debate.