Assinar

Editorial: Um forte sabor a jornalismo

“Fala-se de informação, de busca de verdade, de conhecimento universal, de humanidades. Há ali um sabor, forte, entusiasmante, a jornalismo”.

Álvaro Laborinho Lúcio
Director convidado

Escrevo ao computador. Coisa extraordinária, esta. Avanço, emendo, recuo, corto, colo, e tudo fica como se brotasse da origem da escrita, sem riscos ou entrelinhas. Sou um homem moderno, pois, e deslumbro-me com isso. Dado à inovação, entrego-me às delícias da tecnologia, repouso nos avanços da ciência. Tudo me vem de fora. Tudo parece chegar-me pronto. Sou agora «Director» de um Semanário Regional de prestígio. Cabe-me dirigir o primeiro número do ano que começa. Entro reservado. A ironia na fala curta é uma defesa. Passo a recepção. Atravesso o departamento comercial. Troco cumprimentos, misturo os sorrisos que trago com os sorrisos que me dão. Chego ao coração do jornal. A Redacção. Os Jornalistas. Dou com os informáticos, a um canto, num jogo de espelhos com o tempo. Recebe-me a Directora-adjunta, mais tarde o Director verdadeiro. São mais quentes os sorrisos, mais cerimoniosos os meus. Conduzem-me à sala de reuniões. É então que tudo vai começar.

O que sinto vem agora de dentro. Honra, enorme, pelo convite. Gratidão, imensa, pela recepção. E um receio contido. Da ciência, da tecnologia, não me chegam as palavras para dar expressão aos sentimentos e é com eles escondidos que parto à aventura. Coisa extraordinária, esta, dos sentimentos, das emoções.

Vejo nascer o jornal. Ali, à minha frente. Ao redor da mesa, os jornalistas, o fotógrafo, os directores, todos convocam os temas a tratar, procuram a forma a dar a cada um, afadigam-se na paginação, procuram dar coerência à edição, definem agendas, marcam encontros, entrevistas, debates.

Há um ano inteiro diante de nós. Misturam-se cultura e inteligência artificial, questiona-se os limites do digital, reclama-se um papel novo para a educação e para a escola, em tudo se pressente o relevo do político, o lugar a conceder ao pensamento, à ética, à sentimentalidade. Porque há um ano novo para abrir, regressam perguntas que vêm de antes, discute-se a instantaneidade do tempo, a superficialidade dos dias, a perda da historicidade e da memória, o valor absoluto dado hoje à eficácia. Fala-se de informação, de busca de verdade, de conhecimento universal, de humanidades. Há ali um sabor, forte, entusiasmante, a jornalismo.

Entre a Imprensa e a Região sente-se uma cumplicidade feita de troca, de entrega e de reconhecimento recíprocos.

Deixo-me envolver. É impossível não o fazer. À medida que o jornal cresce no espírito e na acção de todos, mais fácil se torna entregar-me às virtudes da ilusão. Sou então «o Director». O tempo correu. Distancio-me. Repouso no espadar da poltrona, e deixo-me levar pela imaginação.

Lá fora, silencioso e veloz, passa um carro sem condutor. Leva dentro pessoas. Silenciosas também, ouvem Bach. Definiram o destino, acertaram a rota, programaram o tempo, confiaram nos algoritmos, libertaram-se.

No encontro consigo próprias, entregaram-se, livres, à fruição da música, e da sua incomparável beleza.

Coisa extraordinária, essa, a Arte!

A Arte. Afinal, ontem, hoje e sempre, a maior invenção da humanidade.

 

Editorial da primeira edição do ano de 2020, publicada a 2 de janeiro, que teve o antigo ministro da Justiça, Álvaro Laborinho Lúcio, como diretor convidado.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.