Assinar

Identidade e território: Um anjo na noite ardente

Tinha sido uma tarde bem dura, onde mais do que apagar fogo, tínhamos andado a impedir que as chamas tomassem conta de muitas das casas disseminadas por uma extensa área.

João Forte, geógrafo físico jfortegeo@sapo.pt

Tinha sido uma tarde bem dura, onde mais do que apagar fogo, tínhamos andado a impedir que as chamas tomassem conta de muitas das casas disseminadas por uma extensa área. O pânico das pessoas era evidente. A noite não foi melhor. No entanto, lá pela madrugada dentro, as chamas deram tréguas, permitindo um merecido descanso. Passava já das três da manhã e o local menos mau que encontrámos para descansar, foi à frente de uma pequena capelinha, no chão cimentado. Exaustos de tantas horas a trabalhar no duro, imaginávamos agora o jantar que se tinha esquecido de nós. Fome, cansaço e muito sono, era esse o cenário por ali. Para esquecer o desespero que a fome nos causava, pensávamos apenas num pequeno-almoço dali a umas horitas. Já com os olhos quase a fechar, surgiu na noite uma senhora com os seus 70 anos, trazendo consigo algo que a bata escondia e dois cobertores debaixo do braço. Abeirou-se de nós e foi a alegria! Trazia consigo dois pacotes de bolachas, uma cafeteira antiga e três canecas de plástico. Éramos vários e, depois das bolachas repartidas, restou muito pouco para cada um. O café também escasseou. Apesar de não ter saciado a fome, aquele gesto da senhora foi marcante e de uma rara bondade. A nossa alma ficou cheia. São gestos como este que nos dão força para fazer o que mais ninguém faz e passar por aquilo que mais ninguém passa.

Escrito de acordo com a antiga ortografia

(texto publicado a 13 de junho de 2013)