Por vezes ele sentia-se especial e desconfiava que ainda se lembrava do tempo em que lhe mudavam as fraldas. Mas isso era uma longínqua reminiscência, algures numa redoma de vidro dentro da cabeça, a fazer lembrar aquelas vozes confusas dos dj’s nos clubes de strip, encostadas ao microfone para parecer sexy. De qualquer maneira, só podia significar uma de duas coisas: ou tinha uma memória prodigiosa, ou se tinha borrado até muito tarde.
À hora de café que vem a seguir ao almoço durante o fim – de – semana (ligeiramente mais tarde do que nos dias úteis), estava ele numa praça onde um poeta espreita a uma esquina, o sol de Inverno brilhava com aquela tonalidade que, consoante o estado de espírito podia ser bucólica ou doentia, quando subitamente ficou estático, pregado ao chão.
Olhou em redor e caiu em si como quem acorda de um longo transe. Pensou que simplesmente não era suposto estar vivo, e tão distraído que era, só naquele momento é que percebeu que o pesadelo acabara. Todos aqueles episódios de insónia, raiva – de acordar pela manhã e por momentos ter a esperança que milagrosamente já não existia aquela sensação de dependência dos comprimidos, como se tivesse homenzinhos a desbastar o seu peito por dentro com uma lixa – tudo isso já podia ser confortavelmente encaixotado no passado.
No fundo, era como uma viagem de comboio em que se vai sentado à frente de um estranho e se sente aquele desconforto que pode ser insuportável quando, por mera infelicidade, o nosso joelho roça no dele. Acaba por não ser nada, mas trememos por dentro como se de um ataque epiléptico se tratasse.
//= generate_google_analytics_campaign_link("leitores_frequentes_24m") ?>Por instantes ainda pensou que aquilo podia ser um delírio, uma outra dimensão, um sonho pensado impossível naquelas noites de agonia, mas não! Inacreditavelmente tinha – se tornado realidade! Também não foi ao ponto daqueles optimistas que pensam ter acabado de ter uma segunda oportunidade na vida. Não, porque o seu cepticismo não o deixava voar tão longe.
Foi mais uma sensação daquelas de quando se visita um sítio longínquo onde já se passou umas férias de Verão, mas no Inverno; uma nova adaptação ainda a medo e cheio de hesitações; um reaprender como quando se passa a cumprimentar a recente ex-namorada com dois beijos na cara.
texto e vídeo: Pedro Miguel
dançarinos: Dimitri Jourde e Line Tørmoen
locução: Rodrigo Bolzan, música: Martin Eikmeier
agradecimentos: João Pissarra @ Cia. do Latão (São Paulo, Brasil) e Ina Johannessen @ Cia. ZVC (Oslo, Noruega).