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É sexta-feira foge comigo: “O caminhar”

“O caminhar” é um texto de Pedro Miguel, aqui apresentado em versão multimédia

À noite o país era bonito com aquelas luzes brancas que até pareciam meter uma certa ordem no caos urbanístico. Visto de cima, um país atrasado, mal iluminado, mal servido, mal vestido, mal penteado , mas que também parecia uma criança reguila, a dormir, que apesar dos disparates feitos durante o dia, à noite apetecia beijar antes de apagar a luz.

Os edifícios estavam lá, grandes e estáticos, a fazer lembrar aquele Buda de loiça que durante anos esteve ao lado da televisão da avó Júlia. Nas ruas, as estradas eram esburacadas, estreitas, e os Mercedes tinham prioridade nos cruzamentos, fruto de um país ainda a aprender a ser cosmopolita.

Eram poucos, mas em casa de alguns, as cassetes estavam sempre prontas para gravar aquele programa de rádio. A voz grave e inconfundível fazia parte do ritual, como um verdadeiro mestre de cerimónias a conferir-lhe uma certa legitimidade. O momento em que o locutor dizia o nome da banda era de máxima importância. Uma lança em África, é certo, mas esta era certeira, bem entre os cornos do animal sedento.

Cada anúncio tinha direito a uma exclamação do outro lado. Cada descoberta era uma vitória, um remar por entre aquelas noites de culto, escuras, num país cinzento por tradição, ainda com a boca aberta de espanto nos anos oitenta.

Ao fim-de-semana, a conversa era posta em dia, sem pré-marcação, a discutir nomes de bandas, de discos e de canções em frente ao Centro Comercial. Uns tinham um Inglês mais apurado que outros, e por vezes geravam-se confusões quanto à denominação de determinada obra.

A novidade tinha destas coisas, e punha as pessoas como que a caminhar sem sensibilidade nos pés. Mas a cumplicidade estava lá, como nas sociedades secretas, o brilho nos olhos, o sorriso mal disfarçado apesar da pose de uma certa dureza.
Anos mais tarde a voz calou-se. Os dias de caminhar sem sensibilidade nos pés instalou-se de novo por momentos. Ele morreu, mas a memória ficou. Viva ele.


A homenagem a António Sérgio
texto: Pedro Miguel
locução: Pedro Sazabra
música: Sérgio Bota
vídeo: Liliana Gomes Silva

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