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Sociedade

“Fala-se dos emigrantes, mas não dos filhos deles”

Em entrevista ao REGIÃO DE LEIRIA, Emmanuelle Afonso, presidente do Observatório dos Lusodescendentes, fala do esquecimento a que os filhos dos emigrantes portugueses têm sido votados. E sublinha que há muito trabalho a fazer junto de um público que, até à terceira geração, pode chegar aos 35 milhões de pessoas.

De onde surgiu a ideia de criar o Observatório dos Lusodescendentes (OLD)?

Surgiu por volta do ano 2000, com a vinda para Portugal de muitos lusodescendentes. Entre duas datas áureas, a Expo 98 e o Euro 2004, havia aquela sensação de dinamismo, euforia, bem-estar económico que atraiu várias nacionalidades e em particular lusodescendentes. Fomo-nos encontrando em vários eventos, criámos uma espécie de tertúlia e chegámos à conclusão de que, apesar dos países de onde vínhamos serem diferentes, tínhamos todos as mesmas dificuldades ao chegarmos a Portugal. Sentíamo-nos imigrantes, sem os mesmos direitos dos outros imigrantes. Não eramos nem carne nem peixe. Tínhamos os deveres, mas não os direitos de muitos imigrantes. Um exemplo muito prático era a questão da língua. Havia aulas de português gratuitas para imigrantes da África e da Europa de Leste e nós, por termos nacionalidade também portuguesa, não tínhamos direito a aulas gratuitas. Tínhamos obrigação de saber falar português e se não soubéssemos que nos desenrascássemos.

Foi sobretudo a questão da língua que motivou a criação do OLD, então?

Há várias outras questões: integração, equivalência de diplomas. Eu, por exemplo, vim em Erasmus e o processo de equivalências foi feito entre universidades, mas quando se vem individualmente é muito difícil junto do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Essa é uma questão que continua por resolver. É um percurso que desanima qualquer um.  Também a questão dos nomes era difícil. No meu BI ficou Emanuela Jaquelina, traduziram tudo. Todos tínhamos problemas muito similares e das duas uma: ou passávamos a vida a queixarmo-nos ou então arregaçávamos as mangas e íamos à luta.

E quem são as pessoas que estiveram na origem da associação?

Tínhamos um painel muito paritário, éramos 20 pessoas, 10 mulheres, 10 homens, de todos os continentes. Muitos já regressaram aos seus países, menos eu que me mantenho aqui.

E o objetivo também se mantém, certo?

Sim, e cada assembleia geral é um brainstorming gigante com muito para fazer, porque nunca houve uma associação de lusodescendentes em Portugal. É óbvio que cada pessoa tem um problema diferente, uma ideia, uma sugestão. Eram reuniões de horas e horas, com muitas ideias, muitos sonhos e tudo é válido. O meu lamento é ao fim de sete anos – vamos festejar agora em 10 de junho o oitavo ano de existência – continuarmos a ser só uma associação. Há muito espaço para muitas associações de lusodescendentes em Portugal, como há nos países de acolhimento. Era bom haver em Portugal mais associações complementares. Poderíamos até dividir o trabalho entre nós. Continuamos a ser a primeira e a única associação de lusodescendentes a partir de Portugal.

E quais são as vossas áreas prioritárias de intervenção?

Não podemos fazer tudo. Concentrámos as ideias em três caminhos distintos. O primeiro verbo importante é acolher, sermos facilitadores de acolhimento que é algo que não aconteceu connosco quando chegámos. Estamos cá para ouvir e responder às necessidades dos lusodescendentes. Às vezes, há um problema de comunicação que não é a questão da língua, é uma questão cultural. O segundo verbo importante é criar pontes com toda a diáspora lusodescendente. O objetivo não é que as pessoas venham todas, isso seria fisicamente impossível. Por causa desse papão que existe no imaginário coletivo português da descolonização e dos retornados, as pessoas pensam que se fizemos muito barulho subitamente vê para cá todos e vai ser a mesma debandada que aconteceu em 75. O que é importante aqui é que essas pessoas, onde estão, se sintam ligadas a Portugal, não precisam de estar cá fisicamente para serem importantes para Portugal. Com esta nova vaga de emigração da crise, e com todos os licenciados que saíram e pelos quais o país chora tanto, o Governo tem feito tudo ou para que regressem ou que fiquem ligados a Portugal. Aquilo em que estamos sempre a insistir, é que isso é importante, mas é também importante com os que saíram nos anos 60 e os descendentes deles. O que se constata, e a associação tem servido para isso, é que somos esquecidos. Fala-se da emigração dos anos 60, mas no discurso político somos esquecidos: fala-se dos emigrantes, mas não dos filhos deles que deveriam ser tão importantes em termos de influência, em termos económicos e turísticos, como os que saíram há 10 ou cinco anos.

Ninguém se lembra dos lusodescendentes, é isso?

Há pouca visão política para isso. As estatísticas são escassas. Analisa-se estatisticamente quem nasce em Portugal e sai, mas esquece-se que quem sai também tem filhos lá fora e que são tão importantes e tão portugueses como os que nascem cá. São mais difíceis de ligar e é esse o nosso objetivo. Temos procurado organizar essa ligação por grupos socioprofissionais, porque as pessoas antes de serem de origem portuguesa são outra coisa.

E o terceiro caminho?

O terceiro é fazer estudos por isso nos chamamos observatório. Isso remete para o ponto dois. Somos esquecidos porque também não existimos nas estatísticas. Não sabemos quantos somos, onde estamos e a fazer o quê. Enquanto não houver essa realidade palpável, não temos grande peso político nem económico. Com o primeiro Fórum Lusoestudos, ao fim de oito anos, conseguimos esse objetivo.

Qual é o balanço que fazes desse primeiro Fórum?

Foi muito positivo pela participação. Tivemos uma coisa que raramente acontece, espero que não seja sorte de principiante. Em muitos apresentações e seminários sobre a emigração ficava muito angustiada, não pela qualidade, mas pela pouca adesão das pessoas e aqui tivemos as duas coisas. Houve uma boa participação e muitas pessoas a ouvir. O único senão e que é um ensinamento para 2019, é que deveríamos ter tido mais tempo para debate e para a intervenção do público.  Também foi bom perceber que a mistura de públicos resulta: investigadores, empresários, políticos, jornalistas, público que raramente se cruza para refletir em comum, tanto de cá, como da diáspora.

No próximo ano haverá nova edição?

Já houve essa declaração de intenção mesmo do próprio local que nos acolheu – a Sociedade de Geografia de Lisboa – que é o símbolo máximo da presença de Portugal no mundo. Foi uma grande honra sermos acolhidos ali, ainda para mais no auditório Adriano Moreira, que foi um bocado o pai da estratégia das comunidades.

De que forma vai o Observatório assinalar o 10 de junho?

Vamos lançar oficialmente o número zero de uma revista online que já está pensada há vários anos. Pretende ser o que que é o Observatório, uma plataforma congregadora de todos os lusodescendentes do mundo a partir de Portugal, onde as associações podem publicar notícias delas, de eventos que fazem e para se conhecerem e interagirem.

Como é que se chama a revista?

Observa Magazine. Também nos pretendemos ligar a outros órgãos de comunicação social, porque nunca somos demais a comunicar. Há um grande défice e, desde o início da associação, o que pretendemos é sair dessa invisibilidade. Quantos mais formos a comunicar e a mostrar que estamos presentes, de boa saúde e somos importantes para Portugal pelo que fazemos no mundo, melhor. É mais rápido do que qualquer esforço do IAPMEI ou do Turismo de Portugal.

Se nada for feito para combater essa invisibilidade, corre-se o risco de perder a ligação a essa massa enorme de gente que são os filhos dos emigrantes?

Há muitos países que trabalham a sua diáspora e que investem nela. Portugal tem tido a sorte de, com o pouco investimento que tem feito, essa ligação ainda existir. De as pessoas virem de férias a Portugal, terem essa saudade. Vê-se quando há artistas portugueses que vão lá fora, há jogos futebol, miúdos que nem falam português a vestirem a camisola. Isso não é devido a um esforço do Estado português, mas tem sido um trabalho excelente dos portugueses que nasceram cá e saíram nos anos 60. Têm feito um trabalho louvável que só agora se começa a louvar, mas que merecia muito mais agradecimentos.

É um trabalho avulso que não está articulado?

Têm sido as mães a criarem grupos nas escolas, nas igrejas que obviamente não vai ser repetido pelos filhos e netos que não nasceram em Portugal, porque essa ligação para quem nasce em Portugal existe na pele, têm esse sonho de voltar para o país onde nasceram. Quem não nasce cá só por milagre mantém essa ligação. Tem de se arranjar uma nova política pública, uma estratégia, quase uma missão de arranjar ferramentas que liguem essa diáspora imensa. Há quem fale de 35 milhões até à terceira geração. Tem de haver estratégias claras e duradouras para conseguir essa ligação, porque senão é mau para quem perde essa ligação e perde a sua identidade e as suas origens, mas é sobretudo mau para Portugal que perde um público de consumidores enorme. Não vamos fazer contas, mas com certeza é muito mais barato ter uma estratégia de exportação das marcas portuguesas junto das suas comunidades lá fora, do que investir em grandes campanhas.

Há algum país que sirva de bom exemplo na forma como trata a sua diáspora e se relaciona com ela?

Nem precisamos de escolher outro país. Em Portugal basta ver a política dos Açores e da Madeira. Têm seis a sete vezes a sua população interna emigrada, despertaram para a realidade e perceberam que a sua sobrevivência depende muito dos filhos que estão lá fora. Apostaram na sua diáspora, sabem usá-la como lobby político e económico. Também gosto muito de citar as Filipinas que fala, não de emigrantes, mas de heróis da nação. Como as palavras são importantes. Alguém que é chamado de emigrante tem logo uma etiqueta bastante negativa, rodeada de estereótipos. Falar de herói é porque as pessoas têm coragem de sair da sua zona de conforto, não se resignam, nem estão à espera de benefícios a lamentar-se. Sobretudo nos anos 60 foram heróis, iam a salto, iam mesmo à aventura. Podiam ser caçados, morrer de fome ou afogar-se quando passavam o Douro. Os heróis que emigraram nos anos 60 nunca tinham visto um mapa. Pessoas que nunca tinham andado de carro sabiam lá o que eram 30 quilómetros ou 1500. Isso tudo parece anedota, mas é muito forte em termos de abnegação, sofrimento e coragem. Quando perguntavas qual era a missão do OLD, em tudo o que fazemos queremos ser também os porta-vozes dos nossos pais e avós, da sua coragem, que foram sempre muito humildes e nunca levantaram ondas. Resumindo numa frase: somos um movimento de cidadania positiva de lusodescendentes para lusodescendentes, de Portugal para fora e de fora para Portugal.

Emmanuelle Afonso, presidente do Observatório dos Lusodescendentes

Fala-se da emigração dos anos 60, mas no discurso político somos esquecidos: fala-se dos emigrantes, mas não dos filhos deles que deveriam ser tão importantes em termos de influência, em termos económicos e turísticos, como os que saíram há 10 ou cinco anos.

O primeiro Fórum Lusoestudos realizou-se a 18 de abril, em Lisboa

Há muitos países que trabalham a sua diáspora e que investem nela. Portugal tem tido a sorte de, com o pouco investimento que tem feito, essa ligação ainda existir. De as pessoas virem de férias a Portugal, terem essa saudade.


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