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“Mais do que preconceito, persistem incompreensões e insensibilidades em relação aos emigrantes”

Aumentar o número de deputados eleitos pelos círculos da emigração e apoiar o ensino da língua portuguesa no estrangeiro são medidas apontadas por Daniel Bastos, historiador e professor na área da Lusofonia, para estreitar a ligação entre Portugal e os seus emigrantes

Aumentar o número de deputados eleitos pelos círculos da emigração e apoiar o ensino da língua portuguesa no estrangeiro são medidas apontadas por Daniel Bastos para que Portugal consiga estreitar a ligação com os seus emigrantes. Em entrevista ao REGIÃO DE LEIRIA, o historiador e professor na área da Lusofonia, fala ainda das “insensibilidades” que persistem em relação a quem saiu do país

Quais as principais diferenças entre a geração de emigrantes das décadas de 60/70 e a atual?
As principais diferenças estão sobretudo naquilo que hoje é percetível de uma emigração mais qualificada e que inclui licenciados, mestres e inclusivamente até muitos profissionais com doutoramento. As circunstâncias andam sempre à volta do mesmo: a procura de melhores condições de vida nesta mobilidade que a Europa permite. Vivemos na construção da cidadania no espaço europeu. Quase nem faz muito sentido falar de emigração mas sim de mobilidade.

Mesmo quem vai para outros continentes que não o europeu já vai mais qualificado. Isso é um traço geral da emigração atual?
É uma característica da emigração atual, embora também continuem a emigrar muitos portugueses pouco qualificados. Em áreas como a saúde – os enfermeiros, os médicos e até os dentistas – vemos jovens portugueses muito qualificados na Inglaterra, no centro da Europa e noutras partes. Quando olhamos para a emigração dos anos 60 e 70, ela não tinha esta característica. Era uma emigração que se destacava por ser pouco qualificada, muito do mundo rural e que se fixou sobretudo no centro da Europa. O caso mais paradigmático é a França, local de eleição para a construção de um projeto de futuro socioprofissional. A emigração destacava-se por ser a salto e ilegal. Outra característica que é muito importante realçar é que, enquanto nos anos 60 e 70 os nossos emigrantes têm como grande sonho ou como grande ambição de vida amealhar o máximo possível para depois regressarem à terra, construirem casa, até criarem um pequeno negócio, comprarem um carro, havia muito esta característica do regressar a Portugal, hoje o retorno não é condição sine qua non. É notório que o mais importante é ter qualidade de vida, estar bem inserido na sociedade de acolhimento. O regresso a Portugal já não é um objetivo.

Essa maior qualificação tem ajudado a quebrar o preconceito que o país tem em relação as seus emigrantes?
Acho que esse preconceito tem sido esbatido ao longo das últimas décadas. Mais do que preconceito, agora acho que ainda há alguma incompreensão.

Em que medida?
Vamos pegar num exemplo concreto: aquilo que aconteceu no período da crise económica em Portugal a milhares de compatriotas nossos, que viram o sistema financeiro português e a resposta da nossa classe dirigente política perante aquilo que foi – e que hoje é mais do que evidente: o saque às poupanças dos nossos emigrantes. Primeiro na falha de regulamentação do sistema, mas desde logo a insensibilidade perante aquilo que são os percursos e trajetórias de vida de milhares de portugueses, que passaram uma vida de trabalho árduo e sacrifício, a amealhar e a poupar e que, de um dia para o outro, ficaram sem nada. Mais do que a questão do preconceito, que está diluir-se, persistem algumas incompreensões e insensibilidades perante aquilo que é este papel importante dos nossos emigrantes e sobretudo falta um reconhecimento mais sentido. O que impele alguém a sair do país à procura de melhores condições de vida é algo que devemos admirar, porque o mais fácil é ficar, é estar acomodado. O sair, partir, arriscar é de valorizar e, sobretudo, de admirar e respeitar.

Os portugueses em Portugal têm noção da influência que alguns dos seus emigrantes têm lá fora?
Começa-se agora a ter melhor essa perceção. Nota-se que, na última década, não há empresa em Portugal que no contexto da internacionalização ou da exportação não procure chegar ao mercado da saudade. Cada vez percebe-se mais a importância de muitos dos nossos compatriotas no estrangeiro por serem empresários de sucesso, dirigentes associativos de sucesso e por estarem ligados a áreas bastante importantes. Mas depois há aspetos que ainda não são muito conhecidos. Eu destacava por exemplo  a rede mundial de luso-eleitos. Ainda nas últimas eleições intercalares dos Estados Unidos subiu para quatro o número de congressistas com origem lusa na câmara de representantes. No Luxemburgo, ainda há pouco tempo o lusodescendente Félix Braz foi nomeado para o cargo de vice-primeiro-ministro e ministro da justiça.  Em França, temos desde o início do século XXI a Associação Cívica que junta mais de quatro milhares de autarcas de origem portuguesa espalhados pelo território francês. No Canadá, que é um dos território onde vive e trabalha uma das mais dinâmicas comunidades portuguesas, tivemos nas eleições autárquicas de Ontário cinco lusodescendentes eleitos. Isso é do conhecimento geral da população? Seguramente não é, mas é importante que esta informação comece a circular, não só pelo impacto que isto tem nos territórios de origem, mas também nas terras que os acolhem. São os mais genuínos embaixadores de Portugal.

Países onde a emigração portuguesa está muito bem integrada e é mais dinâmica, acabou de dar o exemplo do Canadá. Há outros?
O caso da França é também muito paradigmático nesse sentido, porque sendo ainda hoje o destino mais tradicional da emigração portuguesa e onde há mais de um milhão de portugueses ou lusodescendentes , destaca-se no plano político. É muito interessante perceber como é que há mais de quatro milhares de autarcas de origem portuguesa que ocupam cargos de responsabilidade no território francês. Mas se formos ver o que é a malha do associativismo, empresarial, cultural, em todas estas dimensões, percebemos que temos portugueses de topo a ocupar posições nestes países. No caso da França, dava este exemplo da região onde o REGIÃO DE LEIRIA está implantado, que é o do Carlos de Matos. É o  retrato expressivo de milhares de emigrantes portugueses que saíram do país com uma mão à frente e outra atrás e de como conseguiu construir um império no ramo imobiliário, em que gera milhões de euros e é responsável por inúmeros projetos de construção na região de Paris.

“Aumentar o número de deputados pelos círculos da emigração” 

Estamos a fazer tudo o que é possível para estreitar a ligação entre Portugal e os seus emigrantes?
Não diria que já foi feito tudo. Diria que temos dado ao longo destes últimos anos passos muitos consistentes e importantes nessa aproximação. 

Haverá mais vantagens em trazer os portugueses ou valorizá-los no sítio onde estão? 
Aquilo que tem que ser ação estratégica do nosso país é procurar reduzir o fluxo da emigração. Se continuarmos a ter uma balança migratória em que a emigração tem um peso maior do que a imigração coloca-se aqui – e já está a colocar-se – um problema social profundo. Penso também que é essencial para aumentar esse estreitar de laços, dar maior capacidade de influência e decisão política às próprias comunidades. Acho que o país e os nossos responsáveis têm que aumentar o número de deputados pelos círculos da emigração. Não estou a dizer que tem que se aumentar o número de deputados no geral. Estou a falar do caso específico dos círculos da emigração. 

Ou seja dar mais peso a esses dois círculos? 
Exato. Temos dois círculos: elegemos dois deputados pelo círculo de emigração na Europa e dois fora da Europa. Se a população de Portugal ronda os 11 milhões de habitantes que vivem no território e se tem metade dessa população espalhada pelo estrangeiro, não são quatro deputados que são representativos. Eu admiro o trabalho e o desempenho dos nossos deputados, mas é sobre-humano dois deputados representarem as comunidades portuguesas em toda a Europa ou em todo o mundo. Se for possível aumentar o número de representantes, abre-se um caminho para que essas comunidades tenham uma voz com mais peso e responsabilização naquilo que são as esferas de decisão do país. Penso que também a questão do voto eletrónico é importante para permitir o voto dos nossos emigrantes. Há todo um caminho que pode ser feito para estreitar ainda mais esta ligação. 

Em relação ao ensino da língua portuguesa lá fora. Vê com alguma preocupação o peso reduzido que ela começa a ter nos currículos do ensino estrangeiro? 
Vamos tendo conhecimento que, a nível curricular em países do estrangeiro, o português parece que tem sido preterido, mas depois olhamos para aquilo que é o peso da língua portuguesa no contexto mundial e percebemos que é a quarta ou quinta língua mais falada do mundo. Os nossos responsáveis políticos e as estruturas na área educativa, com a questão do Instituto Camões, têm que fazer uma ligação mais estreita com as comunidades e com o meio associativo. É notório, nos dias de hoje, que um dos problemas que as comunidades atravessam, e vão atravessar nos próximos anos, é a renovação de quadros. Vamos aos clubes e às associações portuguesas, em França, no Canadá, na América, e o que assistimos é a presença das primeiras gerações, mais velhas. Entre as gerações mais jovens há nitidamente um défice porque não se identificam e as próprias associações têm que ter uma abordagem diferente. Já não pode ser apenas a abordagem tradicional que é importante – o folclore, o desporto – mas sobretudo ir ao encontro daquilo que são agora as mundividências dos lusodescendentes. Muitos têm dificuldades ou já não falam português. No ensino, as nossas autoridades têm de se articular com as autoridades desses países e continuarem com essa promoção que tem que ser extensível ao meio associativo, para revalorizar a importância que o português tem no espaço mundial no contexto da lusofonia.

Entrevista publicada na edição de 1 de agosto de 2019 do REGIÃO DE LEIRIA e na edição extra distribuída gratuitamente na fronteira de Vilar Formoso e nas médias e grandes superfícies, entre 26 e 28 de julho de 2019

Patrícia Duarte
Jornalista
patricia.a.duarte@regiaodeleiria.pt

 Daniel Bastos nasceu a 18 de janeiro de 1980 em Fafe. Licenciado em História pela Universidade de Évora em 2003, concluiu no mesmo ano o Curso de Cultura Teológica, pelo Instituto Superior de Teologia de Évora. Em 2013, pós-graduou-se em Ética e Filosofia Política, pela Universidade Católica em Braga.  Com uma formação eclética, soma vários prémios e participações em conferências nacionais e internacionais, assim como livros publicados no domínio da História da Emigração. Ao longo dos anos, o seu percurso tem vindo a alicerçar-se na Lusofonia. Também na imprensa regional escreve regularmente sobre o tema.

O que impele alguém a sair do país à procura de melhores condições de vida é algo que devemos admirar, porque o mais fácil é ficar, é estar acomodado”

É muito interessante perceber como é que há mais de quatro milhares de autarcas de origem portuguesa que ocupam cargos no território francês”

Se a população de Portugal ronda os 11 milhões de habitantes que vivem no território, e se tem metade dessa população espalhada pelo estrangeiro, não são quatro deputados que são representativos”

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