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rosto do médico psiquiatra Sérgio Martinho

Sérgio Martinho

Médico psiquiatra

serg.m.martinho@gmail.com

César olha para a Ucrânia

É preciso saber o que é o quê; toda a gente deve poder dizer: isto é causado pela natureza, mas aquilo é causado pelo tirano. É indispensável que todos saibam qual é a catástrofe da natureza e qual a catástrofe do tirano.

Os tiranos sabem esperar, como animais com dentes aguçados e pernas fortes, que se escondem atrás da vegetação, preparados para o bailado da predação. Possuem instrumentos precisos que lhes permitem saber que não se misturam catástrofes no mesmo balão-de-ensaio. As catástrofes não se devem aglutinar, porque se subtraem; as catástrofes devem justapor-se, porque se somam. Uma coisa é certa: as catástrofes não se podem confundir. E o tirano é um epistemólogo obcecado, um decantador de acontecimentos.

É preciso saber o que é o quê; toda a gente deve poder dizer: isto é causado pela natureza, mas aquilo é causado pelo tirano. É indispensável que todos saibam qual é a catástrofe da natureza e qual a catástrofe do tirano. Não se misturam catástrofes, porque o tirano não é menos que a natureza, nem merece menos respeito. E, se a natureza arranca dos humanos uma perplexidade de olhos esbugalhados, o tirano não deve ficar atrás, mas também não se deve misturar com esse espanto maligno e amoral. Ele possui a sua própria política de espanto maligno que coloca a política da natureza a pedir esmola.

Portanto, o tirano espera, para conseguir circunscrever com minúcia a parcela que lhe pertence no somatório da miséria humana. Acima de tudo, o tirano espera, porque não pode haver dúvidas sobre quem faz desaparecer, sobre quem extingue; por isso, a certa altura, existem hospitais onde os moribundos que tossem são mortos por um míssil imediato que apaga todos os órgãos vitais; nos hospitais, o tirano esclarece: neste momento, eu sou mais perigoso do que a natureza; neste momento, sou eu quem faz desaparecer.

Não pode haver dúvidas: o tirano não é um acidente, não é uma doença, não é um desastre natural, não é, em suma, uma coisa que pode acontecer. O tirano aparece e acontece, com rapidez e intencionalidade; não é uma dessas coisas ridículas do mundo, que se arrastam, que ziguezagueiam, que perdem tempo, que pingam do tecto por entre fendas, nuas de desígnio, ausentes de providência.

Acções que não se podem confundir: uma coisa é o que determina a natureza; outra coisa é o que determina o tirano. Não dar à natureza o que é do tirano, nem dar ao tirano o que é da natureza; esta é uma regra para sobreviver a uma vida em tirania.

Portanto, quando a natureza resolve surpreender com a sua estupidez imprevisível, o tirano espera nos bastidores, sem ponta de tremor que lhe tolde o espírito, porque está convicto da eficácia do seu espectáculo. Quando a natureza resolve aparecer com o seu absurdo ingénuo, o tirano espera; afinal, ele não é louco, sabe ainda que não pode coagir um terramoto com a sua voz, esmagar um vírus com o seu polegar ou disparar sobre um maremoto com a sua arma. Por isso, enquanto se prepara, permite que a natureza termine a sua actuação, levar quem deve partir, deixar quem resistiu. Depois, sim, após esperar pela sua vez, com distinção burlesca, entra o tirano, que não partilha o espectáculo, que não dispensa cada onda ou partícula de luz do holofote, que recebe os aplausos de si próprio. Achando-se no palco, o tirano oferece o seu espectáculo, que consiste em mostrar a sua mão. O espectáculo do tirano está todo nos dedos da mão, à laia de um prestidigitador grosseiro que escarrasse no chão. Começa com o dedo médio, porque percebe de obscenidades. Passa para o polegar, que, embora não destrua vírus, se vira para o chão, sem qualquer misericórdia, anunciando os destinos dos homens, como uma moira moderna. E o auge do seu escândalo incandesce no seu indicador em riste, que acusa, que aponta, que ordena, que desloca massas, que ri dos olhos e da cabeça, até que, por fim, mergulha, esticado e forte, sobre um botão que extingue, que faz desaparecer.

Na audiência, não se conhece o fim, mas não se abre nenhum alçapão. De cima, chove, mas tudo arde. Não há desta chuva na natureza.

Escrito de acordo com a antiga ortografia