Os tiranos sabem esperar, como animais com dentes aguçados e pernas fortes, que se escondem atrás da vegetação, preparados para o bailado da predação. Possuem instrumentos precisos que lhes permitem saber que não se misturam catástrofes no mesmo balão-de-ensaio. As catástrofes não se devem aglutinar, porque se subtraem; as catástrofes devem justapor-se, porque se somam. Uma coisa é certa: as catástrofes não se podem confundir. E o tirano é um epistemólogo obcecado, um decantador de acontecimentos.
É preciso saber o que é o quê; toda a gente deve poder dizer: isto é causado pela natureza, mas aquilo é causado pelo tirano. É indispensável que todos saibam qual é a catástrofe da natureza e qual a catástrofe do tirano. Não se misturam catástrofes, porque o tirano não é menos que a natureza, nem merece menos respeito. E, se a natureza arranca dos humanos uma perplexidade de olhos esbugalhados, o tirano não deve ficar atrás, mas também não se deve misturar com esse espanto maligno e amoral. Ele possui a sua própria política de espanto maligno que coloca a política da natureza a pedir esmola.
Portanto, o tirano espera, para conseguir circunscrever com minúcia a parcela que lhe pertence no somatório da miséria humana. Acima de tudo, o tirano espera, porque não pode haver dúvidas sobre quem faz desaparecer, sobre quem extingue; por isso, a certa altura, existem hospitais onde os moribundos que tossem são mortos por um míssil imediato que apaga todos os órgãos vitais; nos hospitais, o tirano esclarece: neste momento, eu sou mais perigoso do que a natureza; neste momento, sou eu quem faz desaparecer.
Não pode haver dúvidas: o tirano não é um acidente, não é uma doença, não é um desastre natural, não é, em suma, uma coisa que pode acontecer. O tirano aparece e acontece, com rapidez e intencionalidade; não é uma dessas coisas ridículas do mundo, que se arrastam, que ziguezagueiam, que perdem tempo, que pingam do tecto por entre fendas, nuas de desígnio, ausentes de providência.
//= generate_google_analytics_campaign_link("leitores_frequentes_24m") ?>Acções que não se podem confundir: uma coisa é o que determina a natureza; outra coisa é o que determina o tirano. Não dar à natureza o que é do tirano, nem dar ao tirano o que é da natureza; esta é uma regra para sobreviver a uma vida em tirania.
Portanto, quando a natureza resolve surpreender com a sua estupidez imprevisível, o tirano espera nos bastidores, sem ponta de tremor que lhe tolde o espírito, porque está convicto da eficácia do seu espectáculo. Quando a natureza resolve aparecer com o seu absurdo ingénuo, o tirano espera; afinal, ele não é louco, sabe ainda que não pode coagir um terramoto com a sua voz, esmagar um vírus com o seu polegar ou disparar sobre um maremoto com a sua arma. Por isso, enquanto se prepara, permite que a natureza termine a sua actuação, levar quem deve partir, deixar quem resistiu. Depois, sim, após esperar pela sua vez, com distinção burlesca, entra o tirano, que não partilha o espectáculo, que não dispensa cada onda ou partícula de luz do holofote, que recebe os aplausos de si próprio. Achando-se no palco, o tirano oferece o seu espectáculo, que consiste em mostrar a sua mão. O espectáculo do tirano está todo nos dedos da mão, à laia de um prestidigitador grosseiro que escarrasse no chão. Começa com o dedo médio, porque percebe de obscenidades. Passa para o polegar, que, embora não destrua vírus, se vira para o chão, sem qualquer misericórdia, anunciando os destinos dos homens, como uma moira moderna. E o auge do seu escândalo incandesce no seu indicador em riste, que acusa, que aponta, que ordena, que desloca massas, que ri dos olhos e da cabeça, até que, por fim, mergulha, esticado e forte, sobre um botão que extingue, que faz desaparecer.
Na audiência, não se conhece o fim, mas não se abre nenhum alçapão. De cima, chove, mas tudo arde. Não há desta chuva na natureza.
Escrito de acordo com a antiga ortografia