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reXistência: “Desolé”

“Desolé” não é, no fundo, muito diferente da atitude do nosso Governo. A cada anunciado corte sente-se um “desolé”, invisível apenas porque não é proferido.

Cláudia Oliveira, jurista, assessora no Parlamento Europeu rexistencia.co@gmail.com

Na cidade de Bruxelas a palavra que mais se ouve todos os dias é “desolé”!

Não adianta procurar nos dicionários pois qualquer significado que se encontre ficará sempre aquém da realidade. “Desolé” não se pode traduzir por um “lamento” ou “lamentamos”, porque “desolé” não é uma mera palavra, é uma atitude, uma postura corporal, uma espécie de ponto final parágrafo em qualquer esperança momentânea que pudéssemos ter, é uma fatalidade.

“Desolé” pode surgir com uma rapidez proporcionalmente inversa à flexibilidade que pedimos, ou então com uma lentidão imensa, quando implica a análise cirúrgica da questão, em busca da vírgula ausente ou de uma qualquer falha na acentuação. Ninguém está disponível para ouvir qualquer argumento, ou para ser sensível a uma situação de urgência. Por vezes re­corda-me uma brincadeira infantil, quando tapávamos os ouvidos com as mãos e gritávamos: “Não estou a ouvir! Não estou a ouvir!”.

“Desolé” serve para nos impedir a entrada num estabelecimento que encerrará dentro de 15 minutos, para nos recusar algo porque não fizemos uma marcação prévia (embora o estabelecimento esteja vazio), pode ser para nos recusar um requerimento ou pedido administrativo, pode ser por tantas e tantas razões que achamos incompreensíveis…

Se estivermos atentos à expressão do nosso interlocutor conseguimos ver o “desolé” a formar-se. Um certo ar triunfal no olhar, uma sobrancelha que se ergue, um esgar no canto da boca, antecedem o sorriso cínico e amarelo com que se profere “desolé”. Há uma espécie mesquinha de prazer por parte de quem diz “desolé”. Ouvir um “desolé” é como querer chegar ao mar e morrer na praia.

“Desolé” não é, no fundo, muito diferente da atitude do nosso Governo. A cada anunciado corte sente-se um “desolé”, invisível apenas porque não é proferido.

Num país onde todos os dias se eliminam possibilidades e esperanças, onde assistimos ao desmantelamento dos serviços públicos de educação e de saúde, sente-se no ar um imenso “desolé” por parte dos seus autores.

Num país onde é ministro quem é licenciado por equivalência, depois de ter frequentado apenas duas disciplinas, publicitam-se em sites, com o aval do mesmo governo, anúncios de emprego para arquitetos com salário de 500€ ou para engenheiros com o salário mínimo, ou contratam-se enfermeiros a 4€/hora. En­colhem-se ombros, culpa-se a austeridade, como se ela própria não tivesse sido uma opção dos governantes, e segue-se em frente no processo destrutivo, “desolé”!

(texto publicado na edição em papel de 20 de julho de 2012)