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Tempo incerto: O velho e o cão

Desceram os dois do táxi com um ar trôpego e cansado. O velho canídeo, gasto e enrugado, amparado em três das patas, cambaleou na direcção da porta da clínica veterinária. O dono seguiu-o com o olhar.

José Vitorino Guerra
José Vitorino Guerra

Desceram os dois do táxi com um ar trôpego e cansado. O velho canídeo, gasto e enrugado, amparado em três das patas, cambaleou na direcção da porta da clínica veterinária. O dono seguiu-o com o olhar.

Sentou-se e, carinhosamente, pegou no cão ao colo, enquanto o afagava com uma mão deformada e trémula.

As roupas acentuavam o ar envelhecido e humilde, bem como a fragilidade do conjunto e apenas os olhos de um azul intenso se perdiam no corpo do animal. Olharam-se, demoradamente, numa suave cumplicidade.

Quando lhe perguntaram as razões da vinda, procurou explicar que o seu amigo estava velho, tinha diarreia e gostava que lhe dessem uma injecção para lhe prolongar a vida. Repetiu, de novo, que gostava de lhe prolongar a vida.

A voz saiu-lhe trémula e arrastada, como se soubesse que estava a cultivar uma ilusão. Todavia, enquanto apertava, mais ainda, o cão entre os braços, emanava de ambos uma doce serenidade. Ligava-os uma confiança inabalável e um destino feito de um passado comum. Espelhavam nobreza e uma profunda amizade. A velhice e a pobreza não lhes tinham retirado o significado da palavra solidariedade.

Não pude deixar de pensar no que quotidianamente se passa em Portugal, onde os velhos são remetidos para a solidão e a miséria, humilhados num País que, de forma crescente, lhes recusa o direito à dignidade e os faz sentir como se estivessem a mais e representassem, por antecipação, um verdadeiro peso-morto.

Uma sociedade onde impera o direito do mais forte à sobrevivência e onde a solidariedade, a confiança e a dignidade vão deixando de ter significado social, face ao poder do dinheiro. Pobres dos velhos a quem o governo se entretém a retirar o Complemento Solidário para Idosos! Tanto mais que não necessitam de ser recapitalizados e não provocam riscos sistémicos na economia!

Numa semana marcada por mais um escândalo financeiro, cujo fundo e as ligações apenas se desenham, mas que serve, mais uma vez, para ilustrar como temos sido governados e as promiscuidades cozinhadas entre o capital e a política, o olhar do velho e do seu cão reconciliou-me, momentaneamente, com a solidariedade humana e deu algum sentido à palavra confiança.

Escrito de acordo com a antiga ortografia

(texto publicado na edição de 14 de agosto de 2014)