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Escrevivendo: Dos Santos e alguns pecados

Entre as memórias felizes da minha infância conto as do dia de Todos os Santos (o “dia do bolinho”) e do inseparável dia de finados.

António Gordo, professor (ap.)antoniogordo@gmail.com
António Gordo, professor (ap.) antoniogordo@gmail.com

Entre as memórias felizes da minha infância conto as do dia de Todos os Santos (o “dia do bolinho”) e do inseparável dia de finados. O “dia do bolinho” era ansiosamente aguardado pelas crianças, enquanto pais e adultos se abasteciam de bolos, frutos secos e moedas, em quantidade bastante para responder a cada “ó-tia-dá-bolinho?”. O dia era para todos um singular dia de trabalho e do mais saudável convívio. As crianças, de casa em casa, numa algaraviada colorida, faziam percursos de quilómetros. Os adultos, mais ao pôr-do-sol, visitavam-se em grupos, provando petiscos e o vinho novo de cada adega do lugar.

No dia de finados eram outra vez as famílias inteiras a orar pelos seus falecidos na missa do dia e a visitá-los nas suas moradas frias, prévia e carinhosamente embelezadas de flores e lágrimas.

Em 2014, não fui ao bolinho. Os políticos, por insensibilidade e insensatez, atiraram a festa para o rol dos defuntos. Fui só no dia destes, a 2, contente de ainda não terem eliminado os domingos. Já não vi o bolinho das crianças. Mas fui ao cemitério alimentar a alma de memórias: amigos, avós, pai, mãe… Tão longe e tão vivos! Em visita como eu, bastante gente adulta. Poucos jovens. Nenhuma criança. Porque escondemos a morte aos mais novos? A lágrima não ousou espreitar – macho aleijão – mas a emoção da criança que vive em mim calou-me até este desabafo.

(texto publicado na edição de 6 de novembro de 2014)